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Aspectos antropológicos e éticos, no ENTRE MARGENS: Diálogo intercultural e outros textos de Sara Jona Laisse – um “chamamento” à reflexão profunda

Por Matos Matosse

 

Deve constituir uma enorme satisfação para Sara Jona Laisse ‒ [Doutora em Literatura e Culturas, em Língua Portuguesa, pela Universidade de Lisboa e docente, na Universidade A Politécnica de Maputo] ‒, particularmente, e, para a classe dos escritores moçambicanos, no geral, por ‒ este mais recente livro: ENTRE MARGENS: Diálogo intercultural e outros textos, desta autora, editado pela Gala-Gala edições, Outubro de 2020, “publicado”, no dia 29 de Junho de 2021, na Biblioteca Central da UP-Maputo, e apresentado pelo Prof. Doutor Afonso Vassoa,  ‒ ter sido levado à Academia pela Universidade Pedagógica. Certamente, aqui – na Academia –, merecerá outro tratamento. Para além de poder constituir um objecto de estudo e análise, a nível dos estudantes da Literatura, servirá, igualmente, [creio] de material de apoio aos estudantes de Antropologia, de Sociologia, quiçá, de História e doutras áreas afins. Aqui, não resisto a isto: Parabéns Magnífico Reitor Professor e Doutor Jorge Ferrão por esta belíssima iniciativa!

Sara Jona impele-nos – num bom sentido do termo – para uma análise e debates profundos dos conteúdos constantes deste livro com 136 páginas; prefaciado por Vanessa Riambau Pinheiro e o posfácio de Ana Mafalda Leite.

Eu proponho-me a analisar alguns textos, como pretexto de levar este livro ao conhecimento do público. Aliás, esse é, também, o papel de um ensaísta ou crítico literário: eis os textos: (1) Ku-tsinga: dos hábitos às mudanças tradicionais, págs.: 35 – 37; (2) Injustiça social: “ukati, ovaxi nivanga hona vasati?”, págs.: 61 – 66; (3) “No meio do caminho”: pedras, sombras, maridos e mulheres da noite, págs.: 76 – 79; e, por fim, (4) “Verdades” dos mitos: rituais de donzelar, págs.: 93 – 97.

[A organização deste livro e, sobretudo, a escolha de conteúdos, a sua sequência, permitem a realização de estudos do mesmo em partes, sem pôr em causa o todo.]

Sara Jona Laisse levanta questões antropológicas, culturais das nossas sociedades – [rituais], [menciono, apenas, (3) três perspectivas na minha visão]: (1) a sua importância, na educação da mulher e, nessa linha, a organização das sociedades. [Aqui, a mulher como sujeito central, tendencialmente, de todas as cerimónias – rituais – apresentados. O homem é olvidado, paradoxalmente, é-lhe atribuído o papel de “chefe de casa”. Um papel que tem as suas exigências. Absurdo?!…]; (2) o aspecto psicológico que estes desempenham aos sujeitos, pág.: 35, 2º §. Aliás, em Injustiça social: “ukati, ovaxi nivanga hona vasati?”, págs.: 61 – 66, Sara diz-nos, baseando-se na canção da cantora moçambicana, Marlen: “…Em fórum doméstico, é ela quem dá à luz, que, entretanto, deve adoptar o apelido do marido, após o casamento; as tarefas caseiras são a ela relegadas, cozinha, serve à mesa e comer. No âmbito profissional, (…) é a mulher quem trabalha, e, entretanto, o chefe do negócio é o marido”., pág.: 62.; e (3) aspecto de ética. Estes rituais respeitam a dignidade da pessoa humana ou, apenas, olham para o fim último? O seu propósito? Por aquilo que se depreende, julgo que não.

Neste texto, há um aspecto a ter em atenção [ver o parágrafo anterior, sobre o âmago da canção da Marlen]: “…deve adoptar o apelido do marido…”; e, limpidamente, vermos a forma verbal “deve”. Aqui nasce a questão de Ética da pessoa. Ou Ética no geral, como queira designar. A imperatividade. A obrigação. O desrespeito pelos direitos do outro [da mulher]. Por que lhe roubar o apelido? Olha, o nosso apelido está, intrinsecamente, ligado a nós. Temo-lo, não desassociado dos nossos ancestrais. Dos nossos espíritos. Por outro, o nosso apelido é a nossa identidade. A nossa dignidade como pessoa.  Urge uma reflexão e – tomada de medidas –, o libertar-se da mulher [já temos este livro a nos dar impulso, a nos remover o véu, a venda que nos cegam.] As mulheres não encontram espaços para negar, devido ao tipo de educação que lhes são injectadas: “Nem que o marido bata em ti, minha filha, deves aguentar o lar”., pág.: 63, 4º §. Ela é chamada a ter paciência. Mais uma injustiça que Sara Jona levanta. A mulher é tida como um indivíduo sem valor. É istificada. É coisificada.

Em Ku-txinga, dos hábitos às mudanças tradicionais, – [Ku-txinga é a purificação de uma viúva pelo seu cunhado; quando uma mulher morre, em substituição, uma irmã ou prima – da falecida – fica com o seu marido.] – nota-se a falta de observância de cuidados de saúde, da contaminação pelo HIV-SIDA. Para este fenómeno, desde 2008, diz Sara Jona Laisse, “o MISAU, dado o elevado índice de cerimónia, em consenso com a AMETRAMO” (…) passou a recorrer-se a ervas para realizar o banho de purificação da(o) viúva(o)”., pág.: 37. Se as sociedades seguissem a ‘purificação pelas ervas’, deixando para trás, definitivamente, a ‘purificação através de relações sexuais’, evitar-se-ia muitas doenças de transição sexual. Mortes. Crianças órfãos.

Algumas questões que Sara Jona no-las traz, como é o caso de maridos e mulheres da noite, continuam a se verificar pela recusa à abordagem, abertamente, dos mesmos, por vergonha, medo, “pelo facto de não se verem em condições de informar que entregaram aquela pessoa a determinados espíritos”., pág.: 78, 1º §. Voltamos à mesma questão de desvalorização da pessoa humana. Essa entrega é para o pagamento de uma dívida que uma pessoa X de uma família Y tenha contraído, às vezes, em bebedeira, ou em curandeirismos, aonde vão para “adquirir a sorte; a riqueza”, etc.

Parece-me, esta certeza tem-na, igualmente, a autora do livro, estes rituais de preparação de uma mulher para o casamento e para a procriação, concorrem para os casamentos prematuros. A mulher é preparada para cuidar bem do marido. Tudo é em volta disto. E as nossas sociedades, maioritariamente, pobres, não encontram mais nada que entregar, precocemente sua filha para os cuidados do homem, obrigando-lhe a abandonar a escola. Há uma coisa que vivi, no meu bairro, década 80, uma moça que já lhe despontavam as mamas, foi submetida pelos seus pais, usando-se uma vassoura de palha ou cesto de palha [não me lembro muito bem do utensílio utilizado] como forma de espantar as mamas; de facto, estas encolheram, timidamente, e, quando estas renasciam, apenas, despontou uma. A outra nunca mais repontou. Isto significa que, às vezes, há deformações físicas que advêm destas práticas. Há problemas de autoestima.

A abordagem destes assuntos não pode caber neste espaço. Como pode ver, caríssimo leitor, fui colocando-os em réstias, que, para a sua compressão profunda, seria necessário que o leitor lesse todo o livro, já, à venda.

 

chonape.matosse@gmail.com

 

 

 

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