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«AS TENSÕES DE UMA ESCRITA EMERGENTE: Os Molwenes de Isaac Zita»

Isaac Zita enquadra-se na geração prosadora emergente no pós-independência de Moçambique, escrevendo com base na herança deixada pela primeira geração de prosadores.

Márcia dos Santos

 

Corria o ano 2000 quando Márcia dos Santos apresentou e defendeu a dissertação com o título «As tensões de uma escrita emergente: Os Molwenes de Isaac Zita». Passadas quase duas décadas, leio o seu trabalho e deparo-me com uma voz apelativa a convocar-nos para a valorização d’Os Molwenes (AEMO, 1988). Eu diria que não se trata apenas da obra de Zita, mas de quantos escritores terão sido, digamos, vítimas do esquecimento. E, como é óbvio, este não será um problema apenas da literatura moçambicana, mas um pouco de outras literaturas africanas de língua portuguesa consideradas emergentes, só para situar a questão a nível dos PALOP. Por isso mesmo, leio, no trabalho de Márcia dos Santos, um apelo extensivo a essas outras literaturas.

Das motivações apresentadas pela pesquisadora para o estudo sobre Os Molwenes, gostaria de destacar duas. A primeira tem a ver com o facto de ter verificado que a obra e o seu autor não eram mencionados no curso de Linguística ministrado na Universidade Eduardo Mondlane, concretamente na disciplina de Literatura Moçambicana em Língua Portuguesa.

Não mencionar uma obra e o seu autor, ainda que não intencionalmente, pode significar que são vedadas as possibilidades de conhecimento de outras representações e, assim, de saber que representações têm sido conservadas ao longo de gerações de autores moçambicanos, africanos ou universais. O trabalho de Márcia dos Santos vai na contracorrente e mostra a utilidade de um compromisso em abrir as literaturas para o conhecimento de visões do mundo que, afinal de contas, tendem mais a aproximar os povos ao invés de os distanciar, como se regressássemos à Pangeia de todos nós, antes da deriva continental. Para além disso, o esquecimento de livros como o de Zita explica, por exemplo, por que este autor é desconhecido sobretudo a partir dos jovens da década de 2000. Mudam-se os tempos e as vontades também. Recorro a este ditado para evocar outra questão relativa ao desconhecimento d’Os Molwenes sobretudo por parte dos jovens.

Se, por hipótese, pensarmos que a obra de Isaac Zita pode criar a ilusão de nada sugerir às novas gerações, quiçá uma resultante da corrente realista em que se pode circunscrever a sua estética, teremos de admitir que os jovens de hoje, que tendem a viver no mundo da tela, com o facebook, instagram e whatsapp, encontrarão na obra dificuldades em manter-se na alienação a que se entregam, incapazes de assumir as dificuldades «reais» do dia-a-dia, as mesmas representadas, mais ou menos, em Os Molwenes. Neste sentido, correríamos o risco de assumir que livros como o de Zita representam hoje a falência do poder do texto literário, o de espevitar a nossa imaginação e criatividade, exactamente porque há uma mudança no tipo de leitores. Mas, e se editássemos o livro para uma versão e-book, mudaria alguma coisa? O índice de sugestão das histórias aumentaria ou diminuiria?

Não me parece que seja uma questão (apenas) de adaptar os livros de ontem às tecnologias de hoje. Pelo contrário, penso que os problemas de iliteracia que enfrentamos dizem-nos que Os Molwenes são mais importantes hoje do que ontem, e por razões que se predem, por exemplo, com a possibilidade de acesso a uma determinada cultura e com a formação do juízo crítico. Eles são, no mínimo, a consciência do passado que tem faltado a muita boa gente, sobretudo aos mesmos jovens. E, se me é permitido o cliché, como viver condignamente este presente sem a consciência do nosso passado?

Mas não mencionar uma obra é também, por si só, razão suficiente para se pesquisar as razões dessa omissão, e foi exactamente o que Márcia dos Santos fez. Mais recentemente, alinhando no diapasão da autora, Albino Macuácua escreveu o texto «O social em Os Molwenes de Isaac Zita: uma representação atemporal», publicado no livro de ensaios Literatura Moçambicana – Da ameaça do esquecimento à urgência do resgate (Alcance Editores, 2015). Isto pode significar que, do ponto de vista da crítica académica, continua a missão resgatadora de uma obra que, segundo Albino Macuácua, «é representada, mais particularmente, uma sociedade moçambicana, marcada pela pobreza e pela tensão, clivagem entre a classe desfavorecida e privilegiada.» (p. 35) Resta agora esperar que os editores moçambicanos ou qualquer outra entidade comprometida com a promoção do que existe de melhor da literatura moçambicana encontre nos trabalhos que vão sendo feitos sobre Os Molwenes razões suficientes para a reedição («imediata») da obra e a sua disponibilização aos moçambicanos e não só.

A segunda motivação a destacar da pesquisa de Márcia dos Santos diz respeito à polémica que se instalou depois da publicação d’Os Molwenes. A revista Tempo é testemunha da querela, como foi, aliás, de muitas outras. Recordo-me de dois textos publicados em 1989: «A “Raiva” de Isaac Zita ou “Dina” de L. B. Honwana?» e «O “plágio” de Isaac Zita», assinados por Irene Mendes e Nataniel Ngomane, respectivamente. Neste caso, o texto de Nataniel Ngomane é uma resposta ao texto de Irene Mendes. Ora, é no respaldo desta polémica que Márcia dos Santos, a partir da uma análise comparada com outros autores, para o que se serve, fundamentalmente, do conceito de Intertextualidade, vai desenvolver o seu trabalho com três objectivos: verificar as principais características da obra e assim mostrar em que medida Os Molwenes é uma obra original; mostrar que influências a obra de Zita sofreu de outros escritores; e definir o lugar do autor e da sua obra na história da literatura moçambicana. Seguindo estes objectivos, a autora compara Os Molwenes com Chiquinho, do escritor Baltasar Lopes, caboverdiano; com o Nós Matámos o Cão-tinhoso, do moçambicano Luís Bernardo Honwana; com Baixa e Musseques, do escritor angolano António Cardoso; com o Yô Mabalane, outro livro a reclamar a reedição, do escritor moçambicano Albino Magaia; com A Mãe, do russo Máximo Gorki; com a Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, outro narrador angolano; com Os Meus Amores, do português Trindade Coelho; e com Godido e Outros Contos, do escritor moçambicano João Dias. E eis que nos deparamos com uma parte da nossa Pangeia!

O trabalho de Márcia dos Santos permitiu, para além de dar uma «nova vida» aos Molwenes, reforçar a necessidade de um conhecimento amplo sobre o funcionamento do sistema literário, especialmente no que diz respeito à produção da obra literária e, finalmente, determinar e compreender as condições do surgimento, desenvolvimento e consolidação da ficção moçambicana, fixando as suas características dominantes. Com efeito, na sua conclusão, Márcia dos Santos salienta que Zita usa os vários tipos de narrador: o que participa nos eventos da história como personagem principal, o que dela faz parte como personagem secundária e o que teoricamente não faz parte da história. Digo «teoricamente» porque, ainda que não tenhamos a marca de um sujeito pessoalizado que diga «eu», em termos práticos, essa história deve ser concebida, ironicamente, como o resultado da produção de um sujeito cuja ambição é justamente ocultar-se. Um outro aspecto de conclusão é que Zita usa predominantemente personagens anónimas, para além de os contos do autor dialogarem entre si num exercício ou jogo de complementaridades.

Uma segunda linha da conclusão refere que Zita não só sofreu influências da obra de Luís Bernardo Honwana como também da escrita da geração de 60 da literatura moçambicana. Percebe-se, igualmente, a influência indirecta de obras de outros autores africanos de língua portuguesa, do realismo português e da literatura russa. Destaque-se, igualmente, que Zita não só se apropria de textos literários, como também da realidade moçambicana no que toca às questões da fome, da miséria, do trabalho árduo, da repressão, da morte.

A terceira e última linha da conclusão de Márcia dos Santos enquadra Isaac Zita «na geração prosadora emergente no pós-independência de Moçambique, escrevendo com base na herança deixada pela primeira geração de prosadores.»

Termino com um bem-haja a Isaac Mário Manuel Zita, escritor moçambicano que perdeu a vida em 1983, com apenas 22 anos. Apesar do seu desaparecimento precoce, quis o destino que Zita driblasse o tempo e legasse à literatura moçambicana uma obra bela, tecida com o pulsar da própria vida.

 

 

 

Márcia dos Santos é também conhecida como poetisa, assinando com o pseudónimo de Rinkel. Publicou Almas Gêmeas (1998), Revelações (2006) e Emoções e Abstracções (2011).

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