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As línguas bantu e a unidade nacional

Há dias fui visitar a minha terra natal kaManyiki, no distrito de Homoíne, província de Inhambane. O que me conduziu àquele espaço foi a saudade do lugar, do ambiente humilde, pacato e, principalmente, das pessoas: daquelas que me viram crescer e daquelas que me fizeram crescer. Com todas elas, enquanto vivi naquela aldeia, na infância, comuniquei-me na nossa língua local. Em kaManyiki, foi através do xitshwa que muitos como eu manifestaram a capacidade da fala ainda pequenos. Com o xitshwa tive as primeiras lições da vida. Aprendi, e apreendi toda uma forma de ser e estar na cultura e no meio social. Então, é graças à esta língua bantu que sou o que sou. Ainda que hoje saiba falar outros idiomas, a minha matriz cultural assenta na minha L1, a língua materna.

Evoco todo este raciocínio porque ao revisitar a minha aldeia natal, tantas décadas depois de lá ter saído, levei comigo, consciente ou inconscientemente, uma postura urbana, que tem no português, seu mecanismo de expressão. Aliás, além do português ser essa “língua significativamente urbana” é também considerada a língua de unidade nacional, pois é falada um pouco por todo o território moçambicano e, se quisermos, é a única língua oficial do país. Nas escolas, nos hospitais, nos tribunais, no Parlamento, nos escritórios ou em tantas outras instituições, públicas ou não, é fundamentalmente por via do português que nos comunicamos. A questão que se coloca é: o facto de a língua portuguesa ser oficial garante, realmente, a unidade nacional?

Não há dúvidas que em todas as cidades e vilas o português é a principal língua de comunicação. Por um lado, essa ocorrência é uma grande vantagem, pois, assim, seja de que região forem, as pessoas entendem-se e partilham de algo comum: a língua oficial, que, inclusive, permite-lhes entender-se com os outros cidadãos da CPLP. Ou seja, o português tem uma dimensão transnacional. Até aqui, tudo bem! O problema surge quando pensamos ao nível local, muito em particular. Na minha aldeia, a língua de unidade é o xitswa. Quando lá apareço e ponho-me a falar em português, falo, mas não comunico. Os velhos, museus vivos do lugar, e homens como eu, que lá vivem, revêm-se, todos eles, na língua local. As cerimónias tradicionais e religiosas são dirigidas através do xitswa porque essa, além do mais, é a língua dos nossos antepassados. Então, há certas coisas que não podem ser ditas em português. Não teriam valor nenhum e nem seriam reconhecidas.

À semelhança de kaManyiki, existem várias “aldeias” moçambicanas em que a língua local é a que realmente importa. Entretanto, a necessidade de sermos nacionais afasta-nos das nossas particularidades.

Não há dúvidas que o português é a tal língua económica e factor de oportunidades, mas nem tudo se mede por aí. A cultura e a identidade de um povo, que têm na língua o principal factor de exposição, são importantes e devem ser sempre consideradas. Cada cidadão moçambicano que tem o português como língua materna é, geralmente, mais um falante (fluente?) que as línguas bantu perdem. Concomitantemente, à medida que a cidade cresce, vão escasseando os lugares de aprendizagem das línguas locais. Então, da mesma forma que se investe no ensino por via do português, é necessário que se faça o mesmo com as línguas bantu, de modo que não haja nenhum tipo de conflito entre o local e o nacional.

O que concorre para esta falta de harmonia é o preconceito em relação às línguas bantu. Preconceito este, que herdamos do colono. Com efeito, quantos de nós não vedamos as crianças de aprender as nossas próprias línguas maternas (bantas), com as mais variadas alegações? Para muitos de nós, na verdade, o que importa é que a criança aprenda a ler e a escrever em línguas europeias. Ora as nossas línguas bantu para que servem?

Urge, caros leitores, mudarmos a nossa forma de ver as línguas. Não se deve criar zonas polares no nosso próprio país, nas quais, de um lado, está a “língua da cidade” e, do outro, as “línguas da aldeia”. Cada língua deve merecer a sua importância e sua dignidade, consoante o espaço e o contexto de uso. O que devemos é prepararmo-nos para aprendermos tantas línguas quantas quisermos e pudermos, porém sem esquecermos as que representam a nossa moçambicanidade. A unidade nacional, social e cultural, certamente, vai advir daí.

 

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