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Ainda sobre a Revisão Pontual da Constituição

A problemática da descentralização reveste-se de certa complexidade e as questões que no processo suscita são susceptíveis de diferentes opiniões, opções ou soluções. Sem dúvida que umas menos outras mais descentralizadoras. Esta seria uma razão de fundo para a necessidade de um debate amplo que informasse as opções e decisões a tomar em cada momento por quem de direito.

A fragilidade do nosso processo reside justamente no deficit de debate público que rodeou esta problemática, pelo menos até ao envio da Proposta de Lei de Revisão Pontual pelo PR à AR. E o compasso de tempo que é agora reservado a este debate, e as circunstâncias em que o mesmo  decorre, não o facilitam, não lhe são muito profícuos.

Um dos riscos que corremos é o de precipitar conclusões sem termos esgotado as questões. Outro é o de reagirmos às opiniões dos outros, de nos posicionarmos, delas concordando ou discordando, sem termos escrutinado com rigor essas opiniões.

Não tenho que me sentir atingido ou prejudicado por isso, mais do que os outros, mas sinto a necessidade de clarificar onde me pareça não ter sido bem entendido no que pretendi expor. Assim,

I

Do n°2 do artigo 291 e do artigo293

A interpretação que fiz do artigo 293 tinha a ver exclusivamente com o afastamento do prazo estabelecido no n°2 do artigo 291, nos termos do qual «As propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até noventa dias antes do início do debate». Considerei pertinente abordar a questão porque embora o proponente a ela não se referisse expressamente, eu tinha conhecimento de que a sua intenção, subjacente ao entendimento com a contraparte no consenso alcançado, era de que a proposta fosse agendada para ser apreciada e deliberada de imediato. E que a urgência neste caso era incompatível com a observância daquele prazo.

Portanto o que pode estar em causa é a minha interpretação do artigo 293 em conexão com o n°2 do artigo 291, e nunca, como há quem tenha entendido, com o artigo 292 (Limites materiais). Pelo menos naquela abordagem.

O artigo 293 (Tempo) estabelece que «A Constituição só pode ser revista cinco anos depois da entrada em vigor da última lei de revisão, salvo deliberação de assunção de poderes extraordinários de revisão, aprovada por maioria de três quartos dos deputados da Assembleia da República». Há uma interpretação segundo a qual esta assunção de poderes extraordinários de revisão só pode ter lugar unicamente para afastar o limite temporal estabelecido na primeira parte do dispositivo. Que teria o único sentido de excepcionar esse limite-regra, estando vinculado exclusivamente a esse sentido.

Tenho para mim que essa é uma interpretação deliberada e infundadamente restritiva da segunda parte do artigo 293. No meu entender, o dispositivo deve ser interpretado no sentido de que o limite temporal em causa só pode ser afastado em caso de assunção de poderes extraordinários de revisão. Mas não deve ser entendido no sentido de que os poderes extraordinários de revisão são assumidos com o único fim de afastar esse limite temporal. Tal seria caso o objectivo fosse o de se antecipar a revisão ordinária.

Assim, se por via de uma revisão extraordinária, se abrisse para uma revisão geral da Constituição, estaríamos perante uma antecipação da revisão ordinária.

Porém, uma revisão extraordinária não é necessariamente uma antecipação da revisão ordinária. Ela pode corresponder á necessidade de uma intervenção cirúrgica para remover, ou resolver, uma dificuldade consubstanciada em determinados dispositivos. É precisamente o caso vertente em que estamos perante uma revisão pontual. Diferentemente, no caso de antecipação de uma revisão ordinária, uma vez tomada a iniciativa pelo proponente, ela teria que estar aberta às propostas de todos os outros interessados, nos termos do n°1 do artigo 291.

O conceito e conteúdo dos «poderes extraordinários de revisão» depende das razões que justifiquem, fundamentem ou determinem a sua assunção. Portanto o afastamento deste limite não constitui, em si mesmo, a causa, ou causa única, da referida assunção.

Foi precisamente a reflexão sobre a experiência da adopção do AGP em 1992 que levou á inserção da segunda parte do artigo 293.

Com efeito, a Constituição de 1990 já estabelecia, no n°2 do seu artigo 198, o prazo de 90 dias antes do início do debate para o depósito das propostas de alteração. Por sua vez, o Protocolo VI, Do Cessar Fogo, do AGP, estabelecia, na alínea a) do n°5, que «O cessar fogo entrará em vigor no Dia E…O Dia E é o dia da adopção do Acordo Geral de Paz pela Assembleia da República, incorporando-o na lei moçambicana.»

 Daí que, quando em Outubro de 1992, o Presidente Chissano regressou de Roma, face à urgente e inadiável necessidade de imediata entrada em vigor do AGP para se pôr termo à guerra, sem exagero, pode dizer-se que desceu do avião e dirigiu-se à AR para submeter o Acordo á sua aprovação, com as incontornáveis alterações constitucionais que eram pressupostas. Embora não existisse dispositivo que acautelasse a existência de uma revisão extraordinária, na circunstância não era possível observar-se aquele prazo de 90 dias para o depósito do AGP, prévios à sua apreciação e aprovação pela AR.

No subsequente processo de revisão constitucional, que culminou com a adopção da Constituição de 2004, era inevitável ter presente essa emergência que nos levara, em 1992, a uma revisão constitucional fora da estrita conformidade com as normas da Constituição que se impunha observar.

Concluindo: a minha abordagem visava explicitamente afastar o prazo do n°2 do artigo 291 em razão da causa fundamental que é a de se alcançar a paz, e da mais que reconhecida urgência dessa causa, no caso, incompatível com o limite temporal do artigo 293 e também com o prazo do n°2 do artigo 291. Não qualquer outro motivo «oculto» ou obscuro.

II

Da natureza do sufrágio, da alínea e) do n°1 do artigo 292 e do seu n°2

A interpretação que eu faço da alínea e) do n°1 do artigo 292 também não tem a ver com algum presumível objectivo «oculto» de retirar o sufrágio directo «…na designação dos titulares electivos dos órgãos …do poder local.», no caso vertente dos Presidentes das autarquias.

Antes pelo contrário. O consenso entre o PR e o Presidente da Renamo, tal como submetido à AR, é que retira esse sufrágio directo ao estabelecer que passam a ser os Partidos com maioria nas assembleias eleitas quem designa o Presidente. Aí de facto deixa de ser o sufrágio dos cidadãos a designar o Presidente para serem os Partidos.

 Eu referi claramente, no meu texto anterior, que esta designação directa pelos partidos, «…constituiria uma alteração de todos os pressupostos em que assenta a legislação eleitoral e o funcionamento das instituições delas resultantes.» O que iria levantar «insolúveis questões…não só quanto á democraticidade desse processo, como quanto à juridicidade do mesmo para se poder inserir numa Constituição da República.»

Quer dizer que ponho em causa de forma expressa a constitucionalização de um tal modo de designação. Agora explicitando melhor o meu raciocínio, considero como matéria não «constitucionalizável», não sendo nem mesmo subsumível a referendo nos termos do n°2 do artigo 292.

Razões?

 Poria em causa o princípio fundamental, consagrado no próprio frontispício da Constituição, no n°1 do artigo 2 (Soberania e legalidade), nos termos do qual «A soberania reside no povo».

Com a designação pelos partidos a soberania passaria sem dúvida a residir nestes…Ora se a estes cabe, nos termos do artigo 74 (Partidos políticos e pluralismo), expressar «o pluralismo político..», e se «concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país», transferir para eles a titularidade do sufrágio, passando eles a designar directamente os edis ou os governadores, seria exactamente transferir-lhes a titularidade da soberania, que deixaria de residir no povo para residir nos partidos.

Isto não seria subsumível a referendo, nos termos do n°2 do artigo 292, porque violaria flagrantemente o estabelecido na alínea a) do n°3 do artigo 136, nos termos da qual «Não podem ser sujeitos a referendo…as alterações à Constituição, salvo quanto às matérias constantes do n°1 do artigo 292». Como esta alteração afectaria directamente o n°1 do artigo2 da Constituição, logo cairia na alçada da proibição desta alínea a) do n°3 do artigo 136 da Constituição. Isto é, não poderia sequer ser submetida a referendo.

Perante esta dificuldade, que se constituiria em obstáculo insuperável, definitivamente insuperável, considerando a urgência de apreciação e deliberação com que estes consensos são submetidos à AR´, apontei como única via a de se consagrar uma solução que respeitasse o conceito de sufrágio directo estabelecido na nossa Constituição, nomeadamente nos artigos 73, 135 e 275, que consistiria em se adoptar a eleição, tanto dos Presidentes das autarquias como dos Governadores de província, pelo sistema de lista com cabeça de lista, que identifica expressamente este como o candidato ao cargo de Chefe do executivo.

Este sistema salvaguarda o sufrágio directo, tal como defendi no meu texto anterior, e tal como podemos extrair do Direito Comparado. Neste ângulo, é interessante e esclarecedora a entrevista de Michel Cahen na última edição do semanário Savana.

Na verdade, e pelo que consegui colher de fontes ligadas ao processo negocial, a exigência de que sejam os partidos a designarem directamente os edis e os Governadores foi colocada pela própria Renamo, escaldada que ficou com a eleição, por voto secreto, em algumas Assembleias Provinciais dos Presidentes destas.

A eleição pelo sistema de lista, com o cabeça da lista vencedora como titular do cargo executivo, resolve, por um lado, essa preocupação da Renamo, e, por outro, respeita estritamente o conceito de sufrágio directo dos artigos 73 e 135 da Constituição da República, como procurei demonstrar. Haveria apenas que alterar o seu artigo 275 sobre o modo de organização desse sufrágio directo, para se estabelecer que não é em lista separada que se elege o Presidente da autarquia mas na mesma lista em que se elege a assembleia. Que nessas listas se elegem as assembleias, o Presidente e o Governador, mas directamente. Aos partidos, ou aos grupos de cidadãos, cabe apenas ordenar a seu critério as listas que os eleitores votam, antes da sua fixação definitiva pela CNE, tal como acontece hoje nas eleições de deputados à Assembleia da República, para os membros das Assembleias Provinciais e das Assembleias Autárquicas.

Michel Cahen considera que com esse modo de eleição se evita o risco de «bonapartismo» que se corre com a eleição «directa» tanto a nível nacional como a nível local. Acho que este é um convite à reflexão sobre os vícios da instituição de autênticos regulados, em que nós próprios já incorremos, e que nos levaram a «soluções de emergência» que muito pouco tinham a ver com democracia.

 

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