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Ainda estamos em desgraça

Só com uma pinça consegues destrinçar as vozes que te falam por cima de nuvens famintas. O mundo não é todo ele tristonho, mas esta é mais uma voz que me rouba a serenidade. São milhares que durante o dia me torturam de boca para dentro e ao anoitecer me tomam a língua, os olhos, os pés e vagueiam por estes papéis. Queria bailar à luz do luar, olhar-te nos olhos e juntos tocarmos lá como muitas vezes fomos capazes de o fazer. Estas palavras são o que vejo e não o que quero.
Minha história? Isto não é tristeza que te baste?

Matei um mosquito, vês? Continuam a viver às nossas custas, sugam-nos com tanta maldade como se a água já não o tivesse feito de forma mais que suficiente. Com a crise de alimentos que agora mora aqui no centro de reassentamento quero ver como é continuamos a produzir sangue para eles. As águas da chuva engoliram tudo o que puderam. Machambas, casas, corpos, galinhas, porcos. Com o passar do tempo, muitas pessoas que foram levadas pelas águas vão aparecendo.

Ninguém sabe onde estiveram durante estes seis meses. Não falam, não ouvem, não vêem. São só corpos voltando para ter sepultura junto dos seus.

A pobreza não chega ao fim tão já. Ciclone Idai somos nós aqui neste centro de reassentamento a viver isto que te estou a dizer. As catástrofes naturais são mais o depois que o momento em que a natureza se zanga. Eu não te quero complicar com narrações, basta-te apenas ver o que estamos a viver aqui.

Minha história? Na verdade, não gosto de me lembrar disso.
Aquela criança a chorar, vês? É órfã de pai e mãe. As águas levaram os dois para sei lá onde. De lá para cá é filha da vida. São muitas na mesma situação que a dela. Os chefes disseram que vão tomar providências. Falaram em adopção, coisas dessas. Por agora, alguns de nós é que cuidamos delas. É desumano, mas quase ninguém as quer acolher. Só dão uma caneca de farinha de milho, três tampinhas de óleo e, uma vez ou outra, uma caneca de feijão por família. Achas mesmo que alguém vai querer mais uma boca para alimentar com essa pouca coisa? As nossas famílias são numerosas, não medimos na hora de fazer filhos. Divertimento é bom, mas quando chegam coisas tristes como estas sofrimento pesa mais. São coisas da vida.

Minha história? Talvez ainda te conte. Mas não gosto de me lembrar disso, sabes?

Estamos todos a tentar refazer a vida. Disseram que vão construir casas para nós. Não te vou mentir, foi muito meu sonho nos meses passados. Para falar sério ainda é. Dormir na tenda no Inverno não é fácil, o frio viola nos sem medo. Agora com as chuvas e o calor é isto que estás a ver. Matei outro mosquito, estás a ver? Este sangue deve ser teu, cheira bem.

Queres um copo? Esta bebida chama-se Nipa. Alguém dali da outra tenda vende, é uma forma de conseguir sustento. Se tivesses chegado na sexta-feira não reconhecerias este centro de reassentamento.

Ficamos à volta da fogueira a partilhar sonhos. Não temos muita coisa por partilhar entre nós. O sofrimento que vivemos hoje e o inimigo que nos roubou tudo é o mesmo. Falando nisso, sabes que há aqueles que partilham maridos e mulheres aqui, nem? Eu não. Mas acontece de verdade. O que esperavas que sucedesse? Muitas famílias na mesma tenda, de vez em quando alguém toca o outro a pensar que é seu e acontece. Com as crianças ali mesmo…

Isto é uma ferida que ainda está aberta, por isso não gosto de lembrar. Aquilo começou com ventos fortes. Estávamos todos em casa. Ficou tudo escuro. Quando nos demos conta já estava a acontecer. Água a entrar na sala e lágrimas gordas a caírem dos olhos. Tudo ficou cheio. Fora não havia terra, nem nada. Tudo era água. Ninguém esperava que aquilo fosse assim. Mesmo agora ainda não entendo bem como aquilo aconteceu. Minha história eu nunca vou esquecer. Mas acho melhor pararmos por aqui. É noite e ainda estamos em desgraça.

 

 

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