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A volúpia da pedra, de Adelino Timóteo por Martins Mapera

Martins Mapera

Universidade Zambeze

Nesta longa viagem, agarra-te à pedra como uma ogiva até à vertigem, capta-lhe as ondas como uma sonda, a compulsão pelo vácuo, dá-lhe a salivática substância do amor pelos beijos, aprofunda-lhe a carícia a diapasão com que a seguras e a vida que aflui nela. Acaricia-lhe até à medula.  Não a abandones. Dispa-lhe ao vento livre. Entra-lhe a cavidade funda das coxas, espreita-lhe as vibrantes cores. Delicadamente.

(Timóteo, VP, p. 12)

Na tradição, a pedra ocupa um lugar de eleição. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu1, procriador do género humano, as pedras conservam um odor humano. A pedra e o homem apresentam um duplo movimento de subida e de descida. O homem nasce de Deus e regressa a Deus. A pedra bruta desce do céu; transmutada, eleva-se em direcção a Ele. O templo tem de ser construído com pedra bruta, e não com pedra talhada: “porque tocando as pedras com o ferro profaná-las-ás” (Êxodo, 20, 25: Deuteronómio, 27, 5; I Reis, 6, 7). A pedra trabalhada não é senão obra humana; ela dessacraliza a obra de Deus, ela simboliza a acção humana substituindo a energia criadora. A pedra talhada era símbolo de servidão e de trevas.

Convoco os conceitos veterotestamentários a propósito do texto de Adelino Timóteo: A volúpia da pedra, que hoje vem a público, pelas mãos de Alcance Editores. Quando o Paulo Serra me convidou a apresentar o livro, antes de saber o título, fiquei hesitante, por duas razões: a primeira é que mal conhecia o Adelino Timóteo. Sabia que escrevia romances. Mas nunca o tinha lido. Conheci-o em 2017, através de Alex Dau, um amigo escritor moçambicano. A segunda, a principal, tem que ver com a minha agenda. Estou a escrever um ensaio inédito sobre Xiphefo, uma revista cultural produzida em Inhambane, por um grupo de jovens professores da escola secundária e da escola técnico-profissional, nos anos oitenta do século passado. Mas, ao me ser anunciado o título do livro, despi-me da sisudez que me é característica, traindo-a contra todos os riscos da depravação de não poder cumprir a meta e o prazo estabelecidos.

Para além de ser uma construção fecunda, o título do livro mexe com as sensibilidades; atiça o fogo2 das emoções e atrai o sexo erecto da mente do leitor. Pois, o substantivo “volúpia" significa sensualidade, erotismo, prazer, charme, luxúria, lascívia, lubricidade, libertinagem, ou, se quisermos, “sex appeal”. A feminidade do substantivo “volúpia” personifica a pedra, atribuindo-lhe um carácter humano e sobretudo um pulcro espirituoso de mulher fermosa e esbelta, masturbando, de forma belicosa, o olho masculino de gente incauta.

Adelino Timóteo é um escritor de civilização alta. Basta referenciar o facto de ter feito uma formação em Ensino de Língua Portuguesa e outra em Direito. As duas especializações formam, ainda, uma simbiose perfeita com a arte plástica, uma actividade consubstancial ao seu filão crítico. A sua obra poética e ficcional é bastante vasta para um menino de 48 anos, nascido num país com ausência grave de civilização canónica da escrita (Moçambique é essencialmente um país oral). E, na verdade, de acordo com os seus parâmetros estéticos e existenciais, não podia pensar e sentir a realidade de outro modo. A sua relação com a arte não tem que ver apenas com a sua formação intelectual, nem com a sua reguilice político-ideológica; tudo isso é espuma crítica obviamente perecível cujo fim chegará um dia. Mas a sua estrutura sentimental, o seu humanismo, as suas ambições puristas vão pulverizar a cultura, perpetuamente.

Sabe-se muito pouco de prémios atribuídos no campo político-ideológico: posso citar alguns: o “Nobel da Paz”, a “Boa governação” (criado pelo sudanês-britânico Mo Ibrahim), “prémio personalidade do ano”, e fica-se por aí. Isso vinga, enquanto político. Não cria história nem estrutura de uma personalidade atemporal. Mas há um contraponto claro no campo da literatura e das artes no geral, onde se cria um leque de seguidores e admiradores, como acontece em futebol, cinema, novela e teatro: arrasta-se multidões e fãs. Adelino Timóteo não está distante disso. O seu reconhecimento em prémios e galardões é indiscutivelmente testemunhal.

O livro que nos apresenta é a continuação de um projecto que começa oficialmente em 1999, com a publicação de Os segredos da arte de amar. E aqui, em Volúpia da pedra, está uma imagem perfeita de amor inscrito na matriz de dualismo platónico (corpo e alma); ou, matéria e memória, ensaiadas por Henri Bergson. Será esta obra a decifração do enigma criado em Corpo de Cleópatra (2016)?, porque, como se sabe, constitui um mito absolutamente enigmático o desaparecimento do corpo de uma mulher que governou Egipto em 305 a. C. e cuja descoberta configura um mistério para os historiadores, arqueólogos e para a humanidade.

Em A Volúpia da pedra está inscrita a imagem de Cleópatra, a última rainha da dinastia Ptolemeu, poderosa e sensual, pintada de jóias de ouro e pedras preciosas, diamantes, esmeraldas, safiras e rubis. Vejamos este trecho semanticamente significativo, extractado da obra de Adelino Timóteo: “Como posso amar uma pedra e senti-la assim vertiginosa, achá-la tão íntima ao que lhe corre interiormente, a sua feminilidade, quando lhe desço até a origem. Imaculadamente” (Timóteo, VP, p. 16). É difícil, incrível, indecifrável e misterioso. É-o, ainda mais, porque, apesar de tudo, o poeta dialoga com a pedra para encontrar as respostas adequadas: “Tão indubitável que de coração para coração a pedra fala-me, a pedra questiona-me, de tão incrível que me ama e o repete na sua constância, no fundo, porque me toca, a sinto um elixir de ouro. Um surto de maravilha pelos sentidos. A pedra doce. Com o teu rosto. A alma humana que a tripula, a língua no que parece indiferente quando me pode beijar, governar-me os sentidos. O rosto belo e filosofal” (ibid.).

Para o autor de Corpo de Cleópatra, a pedra é um objecto humano porque tem sangue que é bombeado por um coração de sentimentos, como nos sugere a passagem seguinte:

Na telúrica dimensão do canto, as pedras são essas flores carnívoras entre as coxas, unidas pelos fundilhos aos quais nos damos e juntos sonhamos, à devoção febril do amor, ao que se perscruta do fio a pavio a rebentação do fogo, a volúpia que as une e as distanciam no curto-circuito onde ele queima o tecido pélvico e o deixa a arder ao prepúcio descarnado e ao chapéu da glande (Timóteo, VP, p. 26).

Daqui se conclui que Adelino Timóteo é um enamorado alienado, mas jamais alheia os seus sentimentos, não alheia a razão nem a lógica de dualismo platónico, pois instiga perfeitamente o matrimónio entre a alma e o corpo. Mais do que isso, não é literatura, nem é cultura. É, sim, o mais negro-feitiço da arrogância!

Obrigado, Adelino Timótea, por nos sugerir esta cosmovisão erótica a sangue frio!

 

Beira, Centro Cultural do Instituto Camões,

10 de Dezembro de 2018

 

1- Na mitologia grega, é um titã da segunda geração. Segundo essa tradição, Prometeu é defensor da humanidade, conhecida pela sua astuta inteligência, responsável por roubar o fogo de Héstia (a deusa virgem grega do lar, lareira, arquitectura, vida doméstica, família e estado) e o dar aos mortais.

2- Luís de Camões define o amor nos termos seguintes: Amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói, e não se sente / é um contentamento descontente, / é dor que desatina sem doer.

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