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A Pele de Otildo Guido

Se queres um desejo,

insinua-te na minúcia

dos detalhes. Pega na pista

de uma palavra indomável

e segue-a delicadamente.

Heliodoro Baptista

 

“Ka Madaukane: da fome e do silêncio” e “Da pele e da caligrafia” são as partes que perfazem o livro de estreia de Otildo Guido, lançado em Novembro, um ano depois de vencer o Prémio Literário Fernando Leite Couto. Embora com alguns registos assimétricos, essencialmente, as duas secções da obra estão intrinsecamente interligadas, do ponto de vista temático e/ou estrutural.

“Na imensurabilidade da estiagem”, O silêncio da pele é um exercício poético cujo substracto é a conversão em verso o que se aproxima à realidade do poeta. Desde “Garimpeiros” (primeiro poema) a “O voo” (o último), a ciência da palavra de Otildo Guido aplica-se no desenvolvimento emocional, utilizando sotaques taciturnos para recitar a poesia como é: autêntica. Não obstante, o poeta imege no campo da óptica para sedimentar um universo, às vezes, aparentemente neo-realista, a partir do alcance da palavra, quer com a alegoria como recurso estilístico, quer com a sinédoque a imprimir nos versos esse carácter polissémico imprescindível.

Neste jogo, no caso de “Ka Madaukane: da fome e do silêncio”, geralmente, Otildo Guido estabelece sujeitos de enunciação que se abstraem da autoridade do “ego” no acto de tornar a poesia mais envolvente. Ao contrário da segunda secção, ali o entusiamo particular é raro, afinal os condimentos da escrita são mais exógenos do que endógenos. Quiçá, como consequência disso, nota-se algum paralelismo entre o leitmotiv e a necessidade de exprimir.

Os sujeitos de enunciação de Guido têm os pés muito assentes no chão. Eles vêem o que se passa à volta, sentem os cheiros e captam tantas outras sensações que os consente adjectivar os substantivos das coisas, claro, com o cuidado de não tornarem a poesia absolutamente “egocêntrica”.

Em parte, O silêncio da pele é uma escrita para os outros. Por isso, em “Ka Madaukane”, os sujeitos sabem ser ministros da palavra, servindo-a no equilíbrio entre a razão e a fantasia, sem que isso se torne uma espécie de culto à Nova Objectividade. Aqui, a escassez, a fome, a penumbra e as particularidades ingratas da existência importam. É por isso que o sofrimento está representado de diferentes ângulos.

Se, em “Ka Madaukane” interessa destacar a variação da escrita entre o impessoal e a pluralidade – “e tudo em nós, nessa luz,/ nessa água, nessa máscara/ dos dias, das noites/ e das palavras tenebrosas” (p. 35) –, em “Da pele e da caligrafia”, sim, os sujeitos não resistem a voltar a mira dos seus olhos ao próprio íntimo. “Da pele e da caligrafia” é a secção mais líquida, com frequentes referências à água (doce e salgada), aos rios, à chuva, às lágrimas ou aos oceanos. Esse interesse-líquido é muito peculiar: “Envolve-me de memórias,/ de cheitos e de culturas/ até que as minhas mãos de água/ se tornem magestosamente um rio” (p. 53).

Com a expressão da poesia mais singularizada, a enunciação dos sujeitos aparesenta-se realmente possessiva e com recorrentes alusões a um eventual “interlocutor” passivo. Isso torna a poesia mais melosa, urgente e pragmática: “Ama-me agora/ amanhã nao estarei// Beija-me as feridas/ e beba-me/ para que me esconda/ dentro da tua solidão” (p. 61).

É na segunda secção que, como diria Heliodoro Baptista, “os sujeitos insinuam-se na minúcia dos detalhes”, definem o que são, o que almejam, e ainda manifestam encantos e projectam musas, afinal a busca pela complementaridade é crucial. É mais ou menos isto O silêncio, de Otildo Guido, um verdadeiro grito da pela.

 

Título: O silêncio da pele

Autor: Otildo Justino Guido

Editora: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 13

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