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A odisseia da avó Ndindiza vítima de COVID-19

A avó Ndindaza está à caminho de 80 anos de idade e ainda assim parece mais nova do que alguns jovens da aldeia. Com apenas 30 anos, estes não conseguem esconder os sinais de desgaste físico estampados na sua cara.

As suas buchechas grandes, longe de significarem bem-estar, denunciam a malnutrição de tanto beberem e alimentarem-se mal. Geralmente os alcoólatras não têm apetide de comer.   

O seu hálito é um misto de cigarros e aguardente puro de massala ou de caju da adega tradicional do velho Tsambe, negócio de anos através do qual criou os seus sete filhos, educou-lhes e hoje assumem posições importantes na sociedade.

Não estudam. Não trabalham. O seu único divertimento é beber e fazer filhos, atrás de filhos, em casamentos prematuros, característicos das zonas rurais. Às vezes fazem biscatos. Carregam coisas para ali. Carregam coisas para acolá. Constroem latrinas. Reabilitam coberturas de capim removidas por ventos fortes que se têm feito sentir na aldeia.

Trabalhos deste género abundam nos meses de Dezembro e Janeiro em que quase toda a gente tem poder de compra. Uns, porque ganharam dinheiro com a produção de aguardente de caju e pela venda da castanha de caju a comerciantes da zona. Outros, sobretudo estes, porque um membro da sua família regressou das minas da África do Sul.

Na casa da avó Ndindiza, viuva, as coisas são diferentes. Aqui vive-se da agricultura. Os seus filhos e os netos estão espalhados pelo país, mas a maior parte reside e trabalha em Maputo. Todos os filhos estudaram e estão bem na vida.

Teimosa, orgulhosa e com a sua mania de não querer depender dos filhos, Didi, como é carinhosamente tratada pelos seus netos e por pessoas mais próximas de si na aldeia, apesar da idade avançada, não abandonou a sua enxada de cabo curto. Pendurada no ombro esquerdo, com botas nos pés para se proteger de cobras e lenço na cabeça, canta enquanto se dirige à machamba, numa rotina diária que começa as 05:00 da manhã.

Quando chega o tempo da colheita, é inacreditável. Enche os celeiros. Uma parte dos produtos manda para a família na cidade. O excedente, vende na aldeia e às vezes a clientes da vila.

Ela, pouco ou nada sabe do que se passa no país. Os filhos lá na cidade ainda não lhe falaram de coronavirus e sobre a necessidade de se prevenir da doença. Acham que a doença não pode chegar lá no interior da província onde nasceram.

O Estado de Emergência vs quarentena é caso para esquecer, numa comunidade que festeja o regresso de seus filhos das minas da África do Sul e não só. Os casamentos, os funerais e as cerimónias religiosas movimentam uma aldeia inteira.

O pequeno rádio da avó Ndindiza através da qual acompanhava os noticiários em língua tsonga, avariou faz tempo e não disse nada aos filhos. Não se pode falar da televisão porque a energia da rede nacional ainda não chegou à aldeia, apesar de promessas sucessivas de políticos em períodos eleitorais de caça ao voto.

Há uma semana, dois idosos, um de sexo feminino, com mais de 60 anos de idade e outro, do sexo oposto, com 70, perderam a vida depois de se queixarem de febre e tosse. A notícia espantou a aldeia inteira. É que muitos já apanharam gripe, mas ninguém antes morreu por causa disso.
Eram pessoas muito respeitadas na comunidade dado à sua honestidade e amor ao próximo. Por causa disso, os seus funerais, realizados em ocasiões diferentes, foram muito concorridos. Centenas de aldeões não quiseram perder a oportunidade de se despedirem deles.

Como manda a tradição africana, depois das demoradas orações no cemitério da aldeia, debaixo de um calor intenso, orientadas pelo pastor Mabunda, os presentes foram juntar-se nas casas dos malogrados para lavarem as mãos e tomarem o habitual chá antes de se dispersarem.  

O seu telefone, a “bombinha” através do qual se comunica com os filhos, recarrega na banca de Mutchatcha, um jovem empreendedor que, para o efeito, instalou um conjunto de batarias. São dez meticais de cada vez e o serviço ajuda a muita gente. Logo pela manhã, a banca até parece uma loja de telemóveis. Fica cheia de telefones de várias marcas e tamanhos.

Didi não sabe ler e escrever. O seu neto, o Joãozinho, de 9 anos, inteligente, a frequentar a quarta classe debaixo da sombra de uma árvore, é quem lê as mensagens enviadas para si por parentes, em língua portuguesa, e traduz para a sua avó. Todos confiam nos serviços do miúdo porque não sabem escrever em xichangana.

Na aldeia, todo o mundo se conhece bem. Através das pegadas dos pés, qualquer um sabe dizer para que direcção foi algum membro da comunidade. Já passavam das 8:00 horas da manhã de segunda-feira e avó Ndindiza, ela que acorda diariamente muito cedo, ainda não tinha sido vista, o que causou espanto e preocupação entre os aldeões.
 
Doía-lhe a coluna. Tossia muito e com febre. Quando lhe bateram a porta, meio aberta, continuava deitada na sua cama e o seu neto, a fazer alguns trabalhos domésticos correspondentes à sua idade. A doente foi acompanhada para o centro de saúde local, mas não ajudou em nada: não havia medicamento e a província acabava de anunciar roptura.

Os seus filhos, netos e a família em geral não foram informados sobre a doença para não lhes preocupar. Tudo está a ser gerido localmente com a certeza de que logo a velha ficará bem.

Uma semana depois, para a surpresa e preocupação da aldeia, o estado de saúde da avó Ndindiza complicou-se. Tem dificuldades de respirar e o hospital de referência dista 120 quilómetros daquela comunidade.

Eram 17:00 horas de domingo quando alguém da comunidade, mais próxima da doente, resolveu ligar a informar sobre a situação de Ndindiza à família em Maputo. Já era tarde para viajar e quando chegaram no dia seguinte, ela tinha perdido a vida três horas depois do telefonema do dia anterior sem poder despedir-se dos seus filhos e netos.

Ela morreu sem conhecer a doença que lhe arrancou a vida, a covid-19. Deixou este mundo sem ter tido a oportunidade de se proteger, como os outros, contra o Coronavírus que invadiu a sua aldeia ante a ignorância daquela comunidade em relação à pandemia.

Ndindiza e os outros dois idosos, Macucule e Mucavel, desapareceram do mundo dos vivos deixando ficar muitas sementes espalhadas pela aldeia que germinarão no seu tempo: dezenas de pessoas infectadas com o Coronavírus transportado para aquela comunidade por alguns dos regressados da África do Sul há cerca de um mês sem passarem por uma quarentena.

 

 

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