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“A Nossa história é a nossa bússola”: desafios para a interculturalidade

Sobre o autor, à guisa de introdução

“Pensar globalmente e agir localmente”, sugere ser o lema de Afonso Vaz Vassoa; um indivíduo multifacetado, a julgar pelos diferentes tipos de formação que caracterizam a sua carreira académica: a Linguística, o Jornalismo, a Comunicação Social – com habilitação em Relações Públicas. Juntam-se a esses factores os seus interesses profissionais nas associações sócio-culturais às quais pertence, nomeadamente: Associação de Escritores Moçambicanos, Associação de Profissionais de Relações Públicas de Moçambique, Associação de Ciências da Comunicação e da Informação e da Rede de Profissionais de Relações Públicas, Marketing e Comunicação das Universidades da Commonwealth. Vassoa é também consultor, pesquisador e docente universitário.

Ao pensar do modo acima referido, são sobretudo questões da interculturalidade, ou seja, do convívio democrático entre diferentes culturas que o preocupam nos últimos anos. Um relance a toda a sua obra que demonstra a linha de pesquisa na qual o autor trabalha é o relacionamento entre as culturas ocidentais e as africanas, que seriam a chave para um concerto baseado no investimento em relações interpessoais entre os povos do mundo. Constata-se ainda, desse labor, que não seria necessário que os povos abdicassem daquilo que são, bastava que glocalizassem os seus modos de agir e de pensar. Ou seja, há urgência, na óptica de Vassoa, de se instituir uma nova ordem mundial, que implique mudança de mentalidade na forma como uns veem os outros.

Será ainda no âmbito desse trabalho, dentre outros tantos que realiza, que destaco África: o Berço da Humanidade e a Fonte da Eternidade, de 1998, livro de poesia, no qual se pode apreender o desassossego do autor, pelo desejo de reconhecimento das qualidades de desenvolvimento de África. Além disso, sugere o banimento do afropessimismo, propondo o melhoramento do relacionamento entre as pessoas. “Vocês Homens, amem-se”, refere ele em nota do autor.

Acrescido a isso, no seu segundo livro, com o título e Comunicação Social e Relações Interculturais: desafios e oportunidades da África Contemporânea, publicado em 2010, obra didáctica, e que é de carácter multidisciplinar, o autor cruza as áreas da Antropologia, das Relações Internacionais e das Ciências da Comunicação, abrindo portas para Estudos Culturais. Nele, Vassoa explica a importância que deveria ser dada à valorização dos diferentes tipos de saberes do continente africano, mormente a necessidade de se esclarecer determinada visão estereotipada sobre este e a premência da existência de relações públicas e sociais que possam contribuir para o reconhecimento do continente, bem como a urgência na solução de problemas tecnológicos que permitam partilhar os saberes científicos e as riquezas naturais de áfrica.

Desafios para a interculturalidade: as cambalhotas e o devir

África, interculturalidade, Antropologia e relações humanas, vistas numa abordagem interdisciplinar voltam a ser recorrentes na obra hoje em apresentação: Cambalhotas de Dedos Marcados, um romance que integra, por um lado, o seu pensar mundos, já afirmado nas suas obras anteriores e, por outro, uma amálgama de enigmas, com um pano de fundo que visa o fomento da interculturalidade relativa ao conhecimento científico versus os saberes tradicionais africanos; as crenças e religiões ocidentais versus ou o culto de crenças e religiões africanas. Sobretudo, a obra se dedica a abordar a condição humana.

Destaco, por exemplo, a explicação de saberes medicinais tradicionais africanos, que são transmitidos de um bisavô ao seu bisneto de nome Racaverdão. Esse bisavô representa, no livro, a sabedoria ancestral que Vassoa nos convida a glorificar. Alguns desses saberes são similares aos dos perorados por teorias científicas, como o caso de se dar importância aos sonhos e de os interpretar, por se acreditar que comandem a vida dos povos africanos e transportam recados dados pelos antepassados aos vivos. Sobre isto também nos fala Altuna (1996), na sua obra Cultura Tradicional Bantu. A hermenêutica sobre sonhos preconizada nessa cultura, dialoga com a interpretação do mesmo fenómeno, defendida por Sigmund Freud, no seu livro A Interpretação dos sonhos. Este que é, também, referido na obra em apresentação, pg. 54 e, segundo consta, “Freud […] sustenta que os sonhos são as chaves para o inconsciente, que é a parte da mente que contém vontades reprimidas, traumas e desejos assustadores demais para serem admitidos” […].

Um outro saber que se pretende partilhado com o mundo e que foi mencionado na obra de Vassoa, tem a ver com a medicina tradicional, através da qual se chama a atenção à consideração de uma quantidade de produtos naturais, que tanto no antanho, quanto hoje, são convocados como imprescindíveis no combate a várias doenças, em detrimento ou no convívio que deveriam ter com a medicina moderna que massifica a industrialização de medicamentos. Esses produtos tradicionais de fortes valores medicinais são: batata africana, moringa, gengibre, quebra-pedra, embondeiro, aloé vera, beterraba e outros; hoje também aceites pela medicina moderna como saudáveis e, nos dias que correm, tem-se propalado serem úteis na desactivação do vírus da covid19. Vassoa apela à massificação do conhecimento e da medicina ancestral e ao convívio desta com a moderna.

Cambalhotas de Dedos Marcados é um título que sugere acrobacias e é o que acontece na obra. Há uma série de reviravoltas que são narradas, numa história com um pano de fundo aparentemente trivial, envolto em histórias de amores, de desamores, viuvez e de infidelidade, mas que essencialmente acaba revelando a história de vida da geração moçambicana conhecida por “ 8 de Março”, trazendo-nos imagens da Historiografia e da cultura moçambicanas.

O romance tem várias nuances no que concerne aos géneros literários (romance histórico, autoficção e romance policial). Nele, o autor descreve, ao pormenor, e com muita adjectivação as suas diferentes personagens. O narrador faz questão de mencionar a diversidade étnico-histórica existente entre elas, para depois explicar que, ainda assim, tinham uma amizade muito forte. Isto revela que essas dissemelhanças não constituíram impedimento para a sua convivência pacífica. Ao realizar esse exercício, alerta e apela que as desigualdades culturais ou étnicas não constituem impedimento para o fomento da interculturalidade, pois a coexistência e a convivência entre diferentes culturas não obstroem a construção de um projecto nacional ou continental comum.

 Da narrativa aos cruzamentos de géneros literários

 A narrativa

Há uma descrição adjectivada e bastante pormenorizada de cada um dos personagens, a partir do seu perfil, que comporta características físicas e psicológicas. E não é à toa que o narrador faz isso. Mas voltaremos mais tarde a este assunto, por convir, antes disso, apresentar esse quinteto. São membros de uma banda musical, os “Cinco Dedos” ou “O Mapa de Racaverdão”. Viviam numa mesma residência, o “Lar de Estudantes Pré-universitários”. Em 1977 tinham todos 18 anos, excepto um, Mocelso, o mais novo.

Sãotilma, a vocalista do grupo, é filha de italiano e português. Cursou Medicina. Angs, o baterista, é filho de americano e indiano. Cursou Psicologia. Mocelso ou Branquinho, baterista e líder do grupo musical, é filho de moçambicanos – cuja mãe é de origem camponesa. Cursou Artes Plásticas, é ilustrador-desenhador. Obéniug ou Pretinho, viola-solo, é filho de Enfermeira cabo-verdiana e de pai branco moçambicano. Formou-se em Veterinária e, por último, Racaverdão escrevia as letras para o grupo, filho de professor do ensino primário formado em missão católica e de mãe doméstica, ambos moçambicanos. Formou-se em Agronomia.

Racaverdão, jovem descrito como sendo negro, alto, musculoso, era um homem que tinha poderes mediúnicos e que se medicava em função delas. Tinha uma cicatriz em forma de mapa da África, na mão direita, com configurações que, de certa forma, tornavam alguns países maiores do que deveriam ser na representação de um mapa oficial e ainda alguns países mutilados. Era uma cicatriz advinda de uma queimadura que teve na sua infância. E essa espécie de mapa era a sua fonte de inspiração para as músicas que escrevia. Além de que, em alguns momentos se transfigurava – em mulher grávida e infeliz, vítima de violações de “mapas missionários.” Essa cicatriz tinha o poder de emitir mensagens.

Um desses dias, nas suas visões viu cinco soldados no cume de uma montanha em posição de combate. Tendo lhe sido explicado pelo bisavô que esses homens revolucionariam Moçambique, lutando contra o colonialismo português. Ao longo da narrativa, apercebemo-nos que se trata dos Cinco Dedos ou, para quem queira, da “geração 8 de Março”, representada pelos membros da banda, que realizaram a insurreição de Moçambique, sobretudo nas áreas nas quais foram formados. Trata-se, também, dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa e das vicissitudes que têm passado ao longo dos anos, mesmo após a instituição da Organização de Unidade Africana. Trata-se da dificuldade em se libertar das consequências do colonialismo

Em dado momento da narração, Racaverdão entra em transe e faz revelações sobre o futuro de África. O simbolismo de toda a sua narração é como se de uma palestra se tratasse, a partir da qual o autor nos sugere a necessidade de se autenticar os saberes mediúnicos transmitidos, por serem portadores de verdades que em algum momento vêm a ter lugar, tão válidos quanto a ciência. Esse personagem faz a premonição de eventos que, de facto, vieram a ter lugar no séc. XIX, como a exploração de Moçambique pela América e pela China, por exemplo, é o que sugerem as mutações que a sua cicatriz comunica.

Cruzamento de géneros literários

 Romance Histórico

Há na obra afirmações e representações que nos fazem pensar tratar-se de um romance histórico, por exemplo, a afirmação: “procura-se em Cambalhotas de Dedos Marcados […] recriar, […] representar […] linguagens e mensagens de algumas almas silenciosas e ruidosas, nacionais e internacionais […]”, cfr. Pg. 7. Os romances históricos têm também esse condão, repor factos omitidos pela Historiografia. Há, também, um exercício de memória, através da abordagem do passado histórico, atributo típico desse género literário.

Uma outra qualidade desse género literário, representada nesta obra, são as referências a datas históricas moçambicanas, como 2 de Fevereiro de 1825 (Batalha de Marracuene); 1964 a 1974 (Luta Armada de Libertação Nacional); 25 de Junho de 1975 (Independência de Moçambique), 8 de Março de 1977 (Chamada da juventude moçambicana para o desenvolvimento do país); 1994, ano de abertura para o pluralismo político em Moçambique e ano no qual a União Africana completou 31 anos de existência.

Há, no livro, a colocação de personagens com existência real, que no romance histórico são designados personagens referenciais, nomeadamente: Eduardo Mondlane, Samora Machel, Malangatana Ngwenha e Alberto Chissano, que no caso do romance ganham o estatuto de personagens referenciais. Há ainda a indicação de alguns espaços moçambicanos, especialmente os de Maputo e alguns de Pemba, onde decorre grande parte das acções, que numa abordagem literária sobre o género, acabam nos dando a designada cor local dos lugares narrados. Outras províncias de Moçambique e países de África são referidos.

Romance auto-ficcional

Ao ler Cambalhotas de Dedos Marcados o leitor pode se colocar a clássica pergunta típica de quando se está perante um romance auto-ficcional: será que esta obra aborda a biografia do autor? Para Faedrich (2015:48), a Auto-ficção é um conceito cunhado por Doubrovsky (1977), para se referir a determinado tipo de romance contemporâneo que, abordando facto de modo ficcional, não tem compromisso com a verdade, por a tornar ambígua. A autora refere ainda que nesse tipo de obras o autor utiliza biografemas para chamar a atenção sobre a sua biografia. Mas o que prevalece como pano de fundo é o texto literário.

O que é típico na auto-ficção é o convívio pacífico e quase indissociável entre a ficção e a realidade. Digo quase indissociável, porque, para um leitor que não conheça o contexto narrado, dificilmente poderá concluir que a narrativa aborda alguns factos reais.

O que me permite a mim, leitora, advogar que Cambalhotas de Dedos Marcados é um romance auto-ficcional, embora o autor se tenha ocultado ou, pelo menos, não haja sinais da existência do seu nome em alguns dos personagens é que, lendo a sua biografia, aliada às peripécias narradas, constatei que ele distribuiu, por alguns dos seus personagens, a sua representação biográfica. Esta corresponde a uma das técnicas deste tipo de prosa ficcional. Existem outras técnicas.

Por outro lado, o uso da auto-ficção como técnica tem a ver com o facto de o autor não desejar se expor ou expor alguns dos personagens, no que concerne aos eventos representados com recurso à verossimilhança. Além disso, o que a Teoria Literária aventa é que, em obras de autoficção, o seu autor não escreve uma biografia, por considerar a sua vida irrelevante para um país e, por causa disso, prefere camuflar alguns dos seus dados biográficos no emaranhado de uma história que pode ser julgada comum.

Dos dados que temos à mão, que são referentes à biografia do autor e que constam da contracapa do livro em apresentação, revelam que ele é Bacharel em Desenho e que fez parte da Geração “8 de Março”, o que sugere que o autor seja tanto protagonista na história da vida real, quanto na narrativa. A par disso, escreveu “um livro intitulado O Princípio do Fim, com objectivo de narrar a história do grupo musical, desde a sua formação até o dia de despedida em Marracuene, incluindo a catástrofe do incêndio. Primeiramente, ele havia dado o título de um provérbio popular que sugere que, Quando a cabeça não regula, o corpo é que paga! Mais tarde, a pedido dos amigos, ele intitulou a obra de uma outra forma para atenuar, aparentemente, a culpa explícita que estava expressa naquele ditado”[…], cfr.. pg. 53.

Ao longo das páginas 74 e 75, pode-se constatar a menção ao tipo de trabalhos de culminação de cursos que cada um dos cinco dedos faria, sendo que caberia a Angs, dissertar sobre  “Efeitos psicológicos de culpas omitidas e Mocelso, “Técnicas de ilustração de romances baseados na vida real”.

A mim me parece que esta história constante do livro não é comum, nem trivial. Há dados não ficcionais que tornam opacos os reais. E provavelmente, pelo desejo de exorcizar algum problema, como por exemplo o das consequências da fogueira feita num piquenique e o atentado à vida de um dos personas. Não há como provar exactamente o que é que se pretende conjurar, mas os dados apresentados indiciam a existência de biografemas na obra.

 Romance Policial

 A existência do romance policial pressupõe a existência de um enigma sobre uma morte, que no final da obra é desvendada e informado que é o criminoso. Regra geral é assim que funciona. Há, na obra, reminiscências de dados que fazem com que o romance em apresentação seja um policial.

Há uma agente policial, Ailen, que se introduz no grupo dos Cinco Dedos, com objectivos de espiar e obter dados para esclarecer o atentado feito a determinado personagem. Há a explosão de uma bomba, que cinco […]. Há também a referência a um mercenário, Fish Reewell ou Frank Reewll, o suspeito de ter criado condições propícias para se efectivar o atentado. Há um homem morto e outro baleado, que é um dos membros dos cinco dedos e que vai para à reanimação em um hospital. Fica em estado de coma […]. Estas são algumas das características do romance policial possíveis de encontrar na obra, mas existem muitas mais, que deixo a critério do leitor, para as descortinar.

Considerações finais

 Em Cambalhotas de Dedos Marcados, o autor utilizou como alegoria cambalhotas ou incidentes da vida de cinco personagens para falar sobre a condição humana, em primeira instância, dos moçambicanos da “Geração 8 de Março” e dos africanos e a interculturalidade que podem construir, em segunda instância.

A obra constitui uma dimensão simbólica dos problemas vividos por cinco moçambicanos da “Geração 8 de Março”, marcados pelo chamamento da pátria, para que contribuíssem para o desenvolvimento de Moçambique, ocupando as vagas deixadas por profissionais portugueses a quando da sua retirada de Moçambique. Mas também se refere aos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, marcados pela ofuscação do ocidente.

Ela é narrada com recurso a um cruzamento de três géneros literários, o romance Histórico, o romance auto-ficcional e o policial. Os dados históricos foram representados com recursos a datas históricas, personagens referenciais, cor local e à memoração de datas e de acontecimentos antigos. Os biografemas deixam marcas que demonstram tratar-se de uma obra de autoficção. Entretanto, recordo que, este tipo de romance não tem um compromisso com a verdade, pelo que a minha recomendação é a de que não se imputem como facto, dados narrados neste livro. Além disso, uma das técnicas utilizadas pelo autor, a de distribuir os seus biografemas por diferentes personagens, tornam opaca a descoberta e a separação entre a verdade e a ficção.

 

 BIBLIOGRAFIA

 ALTUNA, R. (1996). Cultura Tradicional Bantu. Maputo: Paulinas.

FAEDRICH, A. (2015). Autofiction concept: demarcations of the concept from contemporary Brazilian literature. Itinerários, Araraquara, n. 40, p. 45-60, jan./jun.

VASSOA, A. (2019). Cambalhotas de Dedos Marcados. Maputo: Alcance.

 

 

 

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