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A morte por companhia

Por: José Paulo Pinto Lobo

 

Estranham o título?

De facto, quer a morte quer os mortos não são má companhia.

Eu sou a prova atestada disso, em história que vos contarei em seguida.

A morte é uma constante da vida. Desde que nascemos caminhamos no sentido do inevitável fim. Terreno, pelo menos.

A este propósito, veio-me à mente uma estrofe rascunhada a altas horas da madrugada.

 

E a morte quando chegar

É abraçá-la sem temor

Se sem dor

nos presentear

Para os crentes outra vida no além

Para os outros…

Pó, criação e alimento de outrem

 

E os finados?

Os defuntos que jazem frios nos seus sepulcros ou leitos de morte, nos ensinam.

Nos visitam nos sonhos. Falam connosco se soubermos escutar.

 

Primórdios da década de oitenta.

O ambiente na casa dos Pinto Lobo era pesado.

O decano da família estava às portas da morte, consumido por uma doença maligna.

O madeirame que sustentava os tectos altos rangia em lamento.

Até as flores dos canteiros do jardim esmoreciam, murchas de desgosto.

A família revezava-se à cabeceira da cama do marido, pai e avô, moribundo.

Em semi-coma. Por vezes as lágrimas corriam-lhe pelo rosto e ele chamava pela mãe.

Porque nos refugiamos sempre no aconchego carinhoso, no colo das nossas mães nos momentos de aflição?

A altas horas da madrugada, a Fernanda minha esposa e a Bela, minha irmã mais velha, ouviram no corredor o chinelar arrastado dos passos da minha avó, que tinha ido descansar após umas horas de vigília. Ela diz-lhes que tinha ouvido o Braz chamar.

Reunimo-nos todos no quarto.

Pouco depois, agarrado à mão da minha avó Ângela, rodeado pelo filho, nora e netos, o meu avô faleceu.

Enquanto tentávamos resolver outro problema complicado, o do caixão, fomos durante a tarde à morgue depositar o cadáver do meu avô.

É que com a nacionalização das agências funerárias a falta de caixões era uma constante, ou melhor, uma certeza.

Depositar é um termo impessoal e frio, mas que outra palavra usar?

O funcionário informou-me que não havia gavetão disponível. Estavam todos ocupados.

«Então como vamos fazer?»

«Bem, se me ajudar há um morto que ninguém veio reclamar. Tiramos esse da gaveta e pomos lá o seu avô.»

Que remédio…

Abrimos o gavetão, na segunda fila a contar do chão e retirámos, a custo, um corpo não reclamado, de um homem coberto de pústulas e tumores. Embrulhámo-lo num lençol e colocámo-lo encostado a uma das paredes da sala.

Após esta operação, o funcionário dirige-se para a porta dando-me as boas noites.

Aprestava-me para sair quando aquele me diz:

«Tem de ficar. Se não vão roubar o seu avô.»

«Como assim? Só você tem a chave! Quem poderia entrar?»

«Estou só a avisar. Viram entrar um defunto novo consigo e estão à espera de roubar, pelo menos o fato com que o seu avô está vestido. Então você tem de ficar aqui, vigiando. Venho abrir às 7h,30m de amanhã.»

Ainda pensei que estivesse a brincar mas não, estava mesmo a falar a sério. Não tive outra alternativa senão passar a noite trancado na morgue.

Muitos anos depois, o meu amigo de infância Fipa Bragança, confirmou-me não só a questão dos roubos, como me contou que as morgues tinham arranjado um negócio inovador. Vendiam “água dos mortos”.

A “água dos mortos” é a água proveniente da lavagem dos corpos. Os assaltantes de casas compram essas águas, banham-se nelas e assaltam as moradias mesmo que estas tenham cães ferozes. Estes, farejando o odor a cadáver da “água dos mortos” ficam transidos de medo e fogem, deixando os bandoleiros à vontade no exercício do mister de rapinanço.

Voltando à história inicial, sem mais o que fazer, sentei-me no chão frio da morgue, encostado aos gavetões. O silêncio na sala era total, com excepção do leve ronronar das máquinas de refrigeração, que por sua vez tornavam o ambiente ainda mais frio. Muito de vez em quando, ao longe, a sirene de uma ambulância cortava o sossego da noite.

Não sei se foi por estar enregelado ou pela insensatez característica da juventude acabei por passar pelas brasas. Talvez sonhando ou em estado de vigília semi-acordado lembrei-me do meu avô e conversei com ele.

Sobre a sua paciência infinita ensinando-me o nome das plantas e das flores. Estas são rosas. Estes lírios e aqueles outros agapantos. Estrelícias e gerbéras. Os arbustos, hibiscos e crótanos. Fetos gostam de sombra. Temos de tirar as ervas daninhas da relva porque senão elas engolem tudo.

Relembrando os seus ensinamentos de música clássica quando ao final do dia regressado do trabalho na Breyner&Writh na baixa de Maputo, me pedia para colocar os discos de vinil na sua aparelhagem estereofónica, gravações da Deutche Grammophon e de orquestras dirigidas pelo maestro Von Karajan. Mozart, Bethoven, Vivaldi, Rachmaninov, Prokofiev, Bach, Schubert, Brahms, Verdi, Haydn, Wagner, Stravinsky e tantos outros de quem não me recordo. Debussy e o seu “Clair de Lune” que me encantou desde a primeira vez que o ouvi. Como se queixava de estar a perder a audição e já não conseguia ouvir todas as variações ou frequências das notas do som gravado, principalmente as graves.

As viagens à Namaacha no velho Morris e as idas ao Luna Parque, da barraca de latas empilhadas onde quem derrubasse todas ganhava um prémio e ficou apenas uma em que falhou na última bola. Quando lhe disse que não fazia mal porque tinha deitado abaixo quase todas as latas. Do encantamento com o fantástico Circo Boswell de duas pistas.

Rememorando a sua religiosa leitura diária de jornal na varanda da frente de casa, enquanto ele e a minha avó esperavam à tardinha pela Fernanda, vinda das aulas, para conversarem e eventualmente darem um passeio até à Costa do Sol, no carocha verde da minha esposa.

De mandar aquecer a sopa fumegante por não estar suficientemente quente.

Das suas queixas de má digestão e gases, emagrecimento gradual, prenúncio do cancro de estômago que acabou por o levar. Como reclamava do médico amigo de família, por entrar mudo e sair calado. Este sem saber como informar a família que o desenlace se aproximava e não havia nada a fazer porque não havia recursos na época.

Acabei até por me rir, lembrando-me das idas ao veterinário com o Pequenu[1], um rafeiro minúsculo, esperto e ladino que nem um alho, que adorava passear de carro com o focinho de fora da janela apanhando o vento nos bigodes, mas que, quando virávamos uma determinada esquina, reconhecia o caminho do consultório veterinário e se metia debaixo dos bancos e era um cabo dos trabalhos para o tirar de lá.

Dizia o meu avô desgostoso, que os animais tinham melhores cuidados médicos do que as pessoas.

As horas foram passando sem eu dar conta. E o pobre indigente estendido no chão e embrulhado num lençol, encostado à parede na outra ponta da sala.

No dia seguinte, não às 7h,30 mas largos minutos depois da hora combinada, ouço finalmente uma chave na fechadura da porta e o funcionário da morgue entrando na sala.

«Então, como estás? Os mortos falaram contigo?»

«Não, não ouvi nada durante a noite. Só lembrei de histórias com o meu avô.»

«Então falaste com o vovô… os outros mortos te respeitaram com certeza. Viram que querias ter uma conversa com esse teu antepassado. Entenderam que esse era o vosso tempo.»

«Também não é todos dias que vêm alguém dormir com o seu defunto. Gostaram de ti e não te chatearam.»

«Estes aqui, de vez em quando falam comigo. Mais mais aqueles que ninguém vem buscar. Vêm se lamentar que não vão ter preparação do corpo nem cerimónia tradicional e então vai ser difícil calmar. Vão desassossegar por aí.»

Agradeci e despedi-me para tratar dos preparativos para o funeral.

Não sei se é memória ficcionada ou não. Um dos meus colegas e amigos das Indústrias Costa vendo a aflição da família com a inexistência de caixão, arranjou uma solução.

«Sr. Director, o senhor ajuda sempre os operários da fábrica com o que é necessário para as cerimónias fúnebres. Então para o seu avô, vamos fazer um caixão com a madeira de pinho dos caixotes dos Leyland que vieram para nós montarmos.»

«Envernizamos, colocamos de lado de fora aquelas pegas dos machibombos, em aço inox, que os passageiros seguram quando estão em pé, de forma a podermos carregar o caixão. A nossa secção de estofaria fará o forro interior, com espuma forrada a napa. Vai ver que vai ficar bonito.»

E assim foi feito. Realmente, quando falecia algum familiar de um dos operários, providenciávamos panos de linho cru branco, que tínhamos para forrar as cadeiras dos autocarros, algumas grades de cerveja quando possível e alguns quilos de farinha de milho comprados a uma moageira vizinha de outra fábrica em que eu era também director.

Em casa, começaram a chegar os vizinhos e amigos. Compungidos.

De vestes escuras e lenços pretos na cabeça.

Para prestar solidariedade e dar os pêsames à família.

Afadigaram-se a minha mãe Ninette, a Bela e a Fernanda improvisando sandes e chá, o pouco que havia para servir aos visitantes naquela época de faltas.

Velar defunto condignamente tem de ser acompanhado de comida e bebida.

Anos mais tarde dirigimo-nos ao cemitério para depositar uma flor na sua tumba e na da minha avó, que infelizmente não tinha tido a sorte de falecer junto da família.

A barafunda dos arquivos era total. Folhas que tinham desaparecido, tal como alguns livros de registo. Indicaram-nos uns números das campas.

Penso que só para nos despacharem e receberem o aguardado “refresco”.

Não reconhecemos os locais que nos indicaram mas ainda assim prestámos as nossas homenagens. O meu avô e minha avó não se importaram.

Sabem como nós gostamos deles.

E os outros defuntos, fortuitamente sepultados no mesmo coval, certamente agradeceram os respeitos prestados.

 

 

Cascais, 7 de Outubro 2021

[1] Pequenu, tradução portuguesa de Pinkeltje, é um pequeno gnomo personagem de livros para crianças, criado pelo escritor holandês Dick Laan, muito popular na minha infância.

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