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“A literatura é registo da alma e o que escrevo reflecte o que sinto”

A escrita de Hélder Muteia é feita de vivências e de experiências particulares. Assim é porque, para o escritor, a literatura é o registo da alma, com o papel de mostrar às gerações vindouras o que foi o ideal da Humanidade. Por isso, o que Muteia escreve reflecte o que sente. Nesta entrevista, o poeta e escritor fala do seu novo livro, O barrigudo e outros contos, lançado semana passada.

Acaba de lançar mais um livro, O barrigudo e outros contos. O que lhe ocorreu apresentar aos seus leitores desta vez?

Com este O barrigudo e outros contos quis apresentar a minha proposta literária de um contexto a seguir a independência. Aqui trago contos escritos há mais ou menos 25 anos, os quais já estavam inseridos dentro daquele material que guardo para publicação. Penso que é um livro interessante, que procura versar sobre o amor, as nossas vivências e as nossas realidades em Moçambique, sem deixar de reflectir sobre um cenário internacional. Portanto, penso que esta é uma proposta que me descreve em relação ao contexto em que escrevi os textos inseridos no livro.

Os seus narradores preocupam-se muito com a exploração dos espaços. Porquê?

Para mim, a localização geográfica e a beleza paisagística contam muito, porque acredito que a própria paisagem sugere determinadas emoções. Essa disposição de descrever paisagens desenvolvi não apenas dos palmares da Zambézia mas também a partir de Manica. A beleza paisagística de Manica marcou-me muito. Ora, à medida que descrevemos a paisagem e a realidade à volta do que se passa, contribuímos para a melhor compreensão da obra e da mensagem.

Há muita criança nos seus textos. É um autor que se preocupa em preservar a memória pueril?

Penso que a inserção desse tipo de memória deve estar gravado no meu subconsciente. Mesmo porque a infância é a melhor fase da nossa existência. Paradoxalmente, na infância estamos no cume da árvore da vida. É na meninice que os nossos sonhos são infinitos. E penso que a felicidade que evidenciamos quando miúdos marca-nos muito. Além disso, a infância é uma fase para ser protegida. É preciso olhar para as crianças e proteger os seus sonhos, de modo que elas tornem-se adultas com valor para a sociedade.

As narrativas deste livro estão revestidas de uma linguagem simples. Foi a pensar nessas crianças que vivem no seu subconsciente?

Acredito que tudo que é bom e bonito é simples, fácil de compreender. A mensagem não deve ser difícil de encontrar e de compreender. Através de uma linguagem simples, que todos podem compreender, a emoção fica mais fácil de digerir e assimilar. Não precisamos encontrar termos muito complicados para descrevermos estados ou momentos emocionais.

Por que construir sonhos, neste livro, a partir de personagens humildes?

Eu parti da realidade de que Moçambique, como país, partiu do nada. Por isso temos personagens com bolsos vazios, sonhos destruídos e com muitas ambições barradas. Daí ser necessário fazermos acreditar aos moçambicanos que o sonho não deve ser perdido. Mesmo que percamos tudo, a capacidade de sonhar, de idealizar, planificar e almejar algo melhor deve permanecer viva e não dependente daquilo que possuímos no momento. O sonho deve depender do que nós interiorizamos e da nossa capacidade de acreditar que podemos chegar longe. É por isso que eu parto de uma realidade muito básica do ponto de vista de situação social e económica. De facto, essa perspectiva está muito bem presente no livro.

Quer com as suas narrativas proteger alguma condição social na mesma proporção que entende que as crianças devem ser protegidas?

Sim, falando de uma camada onde a emoção é mais vivenciada e com maior impacto: a camada dos que sofrem. Por exemplo, ao conto “A menina das pedras” levo uma realidade daquelas crianças que têm que realizar tarefas duras, de modo a alimentar as suas famílias. E este conto foi inspirado numa menina que, realmente, vendia pedras. A partir desta história, chegamos à realidade actual de Moçambique e do continente africano. No outro conto, “O homem tijolo”, falo dessa condição de alguém que não é respeitado. Portanto, do nosso quotidiano, da nossa vida, procuro sempre encontrar os modelos que servem de inspiração para qualquer moçambicano.

Por que recorrer a um estilo hilariante ou burlesco para retratar cenários graves?

Procuro mostrar que, mesmo tratando de assuntos sérios, podemos encontrar espaços para nos emocionarmos, positivamente ou negativamente.

Daí termos um pato tão interventivo num dos textos do livro?        

Sim, quis que a história de um julgamento, a envolver humanos, transcendesse para o universo dos animais. Mesmo assim, há no conto emoções sugeridas pelo autor. E o fim do conto é brusco, precisamente para fazer com que cada leitor chegue à sua conclusão, com choque, porque daí surge o interesse do leitor continuar com a leitura.

Como criador, agarra-se a essa ideia de as suas histórias puderem continuar nas cabeças dos seus leitores?

Sim, porque, quando escrevemos uma obra, não interessa se de poesia ou de contos, estamos a fazer uma sugestão. Depois, o leitor constrói a sua própria história a partir dessa sugestão. Muitas vezes, quando escrevemos um texto, a interpretação do leitor é completamente díspar. E o objectivo também é esse, que o leitor leia a obra e, a partir daí, desenvolver outras ideias. Afinal, a arte tem que ser inquietante e, às vezes, deve levar as pessoas à indignação.

Há um efeito catártico muito acentuado no texto “Homem feio”. Aonde quis chegar?

Neste conto pretendo sugerir uma viagem do leitor do exterior para o interior. Muitas vezes, nós olhamos para as pessoas e tiramos conclusões sobre o que a pessoa é a partir do seu estereótipo. Eu convido o leitor para uma viagem até dramática ao interior da natureza humana, com valores, princípios e procedimentos que se têm em relação aos outros. 

Os textos deste O barrigudo têm, digamos, informação muito condensada. De que se serve para o efeito?

Sirvo-me da veia literária ligada à poesia, que é a informação condensada. Enquanto a prosa é mais diluída, a poesia é um produto mais concentrado. Então, aproveito-me muito da minha capacidade de comunicação da poesia.

Escreve pensando nos seus leitores?

Sim. Não consigo comunicar sem pensar na pessoa que vai receber a mensagem. Penso sempre no meu leitor e, apesar de ter vivido em alguns países, o leitor em que penso, quando escrevo, é o moçambicano. Preocupo-me muito com a mensagem que o transmito e pela forma de comunicação. Aliás, essa foi uma das grandes batalhas da geração Charrua, ao preocupar-se com a estética da linguagem.

O que a escrita tem-lhe proporcionado?  

Muitas lições. A língua e a literatura são instrumentos de evasão e de viagens. E a escrita proporciona-me também um espaço de reflexão.

Há muitos animais na sua escrita. Isso vem da sua relação com a veterinária?

Não, vêm das minhas experiências infantis. Convivi muito com formigas, patos, passarinhos e com todos os animais que referencio no meu livro.

Como é dialogar consigo mesmo através dos diálogos com os seus leitores?

É um diálogo muito interessante. Aliás, um dos livros que irei publicar será Diálogos com pulgas, um diálogo comigo próprio, mas na presença de uma pulga. É importante essa capacidade do autor dialogar e estar bem consigo próprio e com tudo o que lhe rodeia, ainda que seja uma pulga, porque a literatura é uma reflexão interna que, depois, propaga-se para o exterior.

Por que continuar a escrever?

Porque o dom da comunicação não deve ser desperdiçado. O dom deve ser exercido. E como sinto que tenho essa capacidade de comunicar através da escrita, sinto-me na obrigação de a exercer, porque a humanidade cumpre o seu ideal através dos pequenos pedaços, dos dons de cada um.

Qual deve ser o papel da escrita no mundo, actualmente?    

A literatura vai fazendo seus registos, marcando as diferentes etapas. A literatura é o registo da alma, a única forma de a descrevermos sem que ninguém apague. A literatura cumpre esse papel de fotografar para que possamos mostrar às gerações vindouras aquilo que foi o nosso ideal, e o que escrevo reflecte o que sinto. 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Recados da alma, de Bento Baloi, e Jesusalém, de Mia Couto.

 

 

 

 

 

 

 

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