O País – A verdade como notícia

A leitura e a formação de leitores em “Escrever a Terra”, de Marcelo Panguana

À Hortência Madalena e Jennifer Banze pelas luzes

 

“Escrever a Terra” é uma obra literária da autoria do escritor moçambicano, Marcelo Panguana, publicada em Novembro de 2018. Está dividida em três capítulos, nomeadamente: As palavras amadurecem; Cartas do fim do mundo; No colo da escrita.

Na presente reflexão, interessa-nos captar os ecos, que são vários, sobre a definição de leitura, a formação de leitores na obra em alusão, com enfoque nos primeiros textos do segundo capítulo, especificamente: “Saber ler” e “Carta à Sónia Sultuane”.

A leitura em “Escrever a Terra”

Indubitavelmente, uma das grandes preocupações do sistema educativo nacional está ligada à leitura, necessariamente à falta desta, uma questão que começa a agigantar-se e cujos reflexos são visíveis em níveis alarmantes de uma certa pobreza epistemológica, baixo saber enciclopédico, cultural, social, dificuldades tremendas na resolução de conflitos, fragilidades no ingresso à atitudes hediondas, entre outros. Na estrada duma reflexão acerca, começaríamos por questionar sobre o conceito de ler ou leitura no qual Panguana (2018:82) afirma que “Há quem pense que a leitura é apenas esse acto de ler aquilo que se encontra gravado num livro, em algum jornal, em qualquer revista ou mesmo na própria areia”. Categoricamente, Panguana propõe-nos uma visão de leitura, acima da descodificação de elementos tipográficos, considerando que, para muitos, um analfabeto seria aquele “que se encontra incapacitado de decifrar os sinais alfabéticos, isto é, de ler e de comunicar, em suma, de se desenvolver”. Será?

O que é, então, leitura? A quem consideraremos analfabeto? Já vimos que para Panguana, o acto de ler não está apenas associado à tipografia, mas à vida no seu todo, de tal forma que “um camponês do lugar mais recôndito deste país sabe prever a proximidade da chuva, “lendo” a configuração das nuvens e a velocidade do vento”. A par de Marcelo Panguana, Mia Couto também apresenta-nos uma visão similar, veja-se “Sou biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros, mas que sabe ler o seu mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto”. Na esteira do debate que Panguana faz, surge-nos uma constatação, segundo a qual, este propõe uma visão mais abrangente e perlocutória da leitura, ou seja, a leitura não deve ser uma finalidade em si e nem limitada aos livros, a importância da leitura não deve ser verificada e terminada no acto de ler. Panguana propõe que as leituras feitas devem apresentar resultados positivos, isto é, devem-se reflectir na sociedade (no mundo do leitor), nas atitudes e, quiçá, no que este for a escrever depois desta leitura seja uma de caractéres seja da vida. Neste caso, Ler é viver, interpretar, compreender e agir. Em suma, o leitor deve exercer a sua actividade sob todas as vertentes possíveis e permitir que a sua leitura refulja no seu quotidiano, veja-se “podemos ser ilustres académicos dotados de uma invejável formação, mas nada seremos capazes de acrescentar à sociedade a que pertencemos se não formos capazes de fazer a “leitura” das coisas que nos rodeiam e sobre as quais assenta o conhecimento, isto é, a cultura”. Nesta senda, a leitura é ainda mais útil quando se faz a intersecção entre o escrito e o vivenciado.

A formação de leitores em “Escrever a terra”, de Marcelo Panguana

Depois de, com brevidade, termos reflectido sobre a importância da leitura ou a visão do conceito leitura nesta obra, compete-nos agora perceber o processo de formação de leitores à luz desta obra.

Em 2019, estava previsto que tivessem lugar as 10as Jornadas da Língua Portuguesa, na Cidade da Beira, entre os dias 2 e 3 de Maio, o que acabou não acontecendo devido ao Ciclone IDAI que abalou aquela parcela do país na época. Mais tarde, em Setembro, o evento realizou-se na Cidade de Maputo, na Universidade Pedagógica de Maputo, concretamente na Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes. O que nos faz trazer estas jornadas é o lema das mesmas, que foi: Língua Portuguesa, Literatura e Formação de Leitores.

Se se verifica deficiências no convite à leitura aos potenciais leitores, então tem que se pensar na formação de leitores. Foi por esta causa que o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, a Universidade Pedagógica e a Universidade Eduardo Mondlane levaram a cabo estas jornadas.

Falar da formação de leitores é outrossim buscar estratégias viáveis para desenvolvimento do gosto pela leitura voluntária, mas como o fazer? Não é uma tarefa fácil, mas é necessário que ajamos todos juntos, ou seja, a escola e suas entidades administrativas, os encarregados de educação, a comunicação social, os escritores, entre outros afins. É preciso fazer com que o livro seja um elemento aliciante para o potencial leitor. Não bastará a leitura na sala de aulas ou recomendação (às vezes desorientada e simples) de obras a serem lidas, embora tudo isso seja importante, o potencial leitor precisa sentir a necessidade de o ler. É preciso que se promova encontros mensais com escritores nas escolas, nos parques ou nas praças, precisamos ter mais concursos escolares em que os prémios sejam livros, os professores, não só os de Língua Portuguesa, devem ser leitores natos que por si só incitem à leitura e configurem-se como modelos para os potenciais leitores, é preciso sensibilizar os pais e encarregados de educação a facultarem uma hora de leitura aos seus educandos, diariamente, que a comunicação social publicite e “venda” a ideia do gosto pela leitura voluntária e outras estratégias que podem complementar ou reorientar as que trazemos. Na acepção de Panguana (2018), em “Carta à Sónia Sultuane”, “o livro é um novo fenómeno que percorre a nossa sociedade. Por conseguinte, a leitura tornou-se uma inadiável exigência”, CONTUDO, “o livro não tem sido capaz de chegar onde o leitor se encontra, não por suposta incapacidade financeira, mas em meu entender, pela ausência de estratégias eficazes e adequadas a nossa realidade”.

Cientes de que teremos trazido alguns pontos que causarão controvérsia, mas também algumas bases para outros mais questionamentos que nos propiciarão alicerces úteis para a redução ou colmatação da falta de leitura e reflexão, encerramos este texto com o seguinte pensamento de Marcelo Panguana: se quisermos ter uma sociedade culta e desenvolvida, se tivermos a ambição de atingir os níveis que tornaram alguns países um exemplo a seguir, devemos criar entre nós, com a urgência que se exige, uma nova paixão: a paixão do livro, da leitura e escrita.

 

Bibliografia

PANGUANA, Marcelo. Escrever a Terra. Maputo, Alcance Editores, 2018.

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos