O País – A verdade como notícia

A importância da imprensa independente

Se a única razão que justificasse a necessidade duma imprensa independente fosse a mera garantia do direito que as pessoas têm de dizer o que pensam, provavelmente essa imprensa não seria absolutamente necessária. Há mérito, claro, em garantir que as pessoas se informem de forma diversificada, algo que não poderia ser garantido se dependessem apenas de fontes oficiais. Todos sabemos que as fontes oficiais têm a sua verdade, ou melhor, têm uma “verdade” que lhes interessa transmitir. Nesse aspecto, não existe diferença entre regimes autoritários ou democráticos. A verdade oficial é sempre refém dos interesses de quem detém o poder político e, por isso, ela não corresponde necessariamente à “verdade”.

Se dissermos, também, que precisamos duma imprensa independente para podermos satisfazer as necessidades que as pessoas têm de estarem informadas, também não estaríamos a proporcionar boas razões para a sua existência. Todas as sociedades dependem,  até um certo ponto, da troca de informação, independentemente da forma como essa troca está organizada. No fundo, sociedade não é outra coisa senão a troca de informação. Viver com os outros é saber dos outros, saber como estão, o que fizeram ontem, o que vão fazer amanhã, o que acham disto e de mais aquilo. Nessa satisfação da nossa curiosidade flui informação, falsa e verdadeira, na base da qual cada um de nós orgnaiza a sua vida. Portanto, com ou sem imprensa independente, a informação fluiria.

Existem, contudo, três razões impecáveis que justificam a existência e necessidade duma imprensa independente. É que ao dar substância à ideia de liberdade de imprensa a imprensa independente garante três coisas fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania activa. Dito doutro modo, uma sociedade democrática precisa duma imprensa independente porque esta dá conteúdo à própria ideia de democracia. Democracia não é um rol de coisas que preenchemos mecanicamente, do tipo eleições, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, etc. Democracia é o reconhecimento da importância capital que a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania activa têm na viabilização da própria democracia. Ou por outra, a democracia é o seu próprio conteúdo.

Pode ser útil reflectir sobre cada uma destas três coisas. A liberdade de expressão protege o direito que cada um de nós tem de articular a sua opinião. É claro que não se trata de qualquer opinião. Como qualquer outra liberdade individual, o seu usufruto só tem validade até onde ela não interfere com a liberdade dos outros. É por isso que existem leis contra a calúnia e difamação. Mas o essencial é que a liberdade de expressão nos protege contra aqueles que não gostariam de nos deixar falar para serem eles a dominarem a esfera pública só com os seus pontos de vista. A liberdade de expressão constitui o reconhecimento de que ninguém detém o monopólio da verdade. A existência duma imprensa independente concretiza este reconhecimento.

Alguém pode levantar uma objecção neste ponto. Pode dizer, por exemplo, que a ideia segundo a qual ninguém teria o monopólio da verdade significa, consequentemente, que mesmo aquilo que não é verdade pode ser veiculado publicamente. Sim, a ideia é efectivamente essa. Dizer que ninguêm açambarcou a verdade não quer dizer que certas coisas que passam por informação na esfera pública não possam ser falsas. Podem ser. A ideia, contudo, é de que é melhor correr o risco de consumir falsa informação do que o risco de ser privado de informação para que alguém tenha o direito de impôr a sua verdade. Os momentos conturbados que o País atravessa com a violência em Cabo Delgado são particularmente instructivos. Sem a protecção da liberdade de expressão estaríamos sujeitos à prerrogativa repetidamente demonstrada do governo de desinformar sobre o que lá se passa. Quando pessoas próximas do governo falam mal de quem comenta a violência em Cabo Delgado e acusam-no de “insurgência digital” e epítetos afins, elas estão efectivamente a manifestar aquele desejo profundo de serem os únicos a desinformarem. Não são necessariamente pela informação séria.

Ora, a protecção da liberdade de expressão está intimamente ligada à segunda coisa que a liberdade de imprensa garante. Refiro-me ao pluralismo, talvez a coisa mais fundamental que a democracia promove e protege. O pluralismo é, na verdade, um princípio. Segundo ele, existem várias maneiras de viver a vida. Nenhuma dessas maneiras tem prioridade sobre as outras a não ser, claro, que para eu viver a vida como eu gostaria de a viver tivesse que eliminar todas as outras maneiras de viver. Por exemplo, se eu sou católico ou muçulmano, e tenho poder para determinar as coisas, se eu exigisse que toda a gente fosse católica ou muçulmana, estaria a violar esse princípio. Isto não é apenas no campo religioso. Mesmo no campo político pode acontecer.

Aconteceu no nosso País quando se declarou a independência. Os libertadores da Pátria impuseram como condição para se ser moçambicano estar de acordo com a orientação marxista que eles tinham. Isso limitou as liberdades daqueles moçambicanos que tinham outra concepção da vida e, por que não, uma outra ideia de Moçambique. A rejeição do pluralismo em 1975 criou, por sua vez, condições para a instabilidade militar que o País viveu durante 16 anos durante os quais milhares de compatriotas perderam a vida e o nosso desenvolvimento económico se atrasou com todas as infra-estruturas que foram destruídas. Portanto, o pluralismo é muito importante. A viabilidade dum País depende muito da sua protecção e mesmo promoção, pois isso garante que apesar das diferenças que existem entre nós possamos viver em comunidade e de forma pacífica uns com os outros.

O pluralismo articula-se com a liberdade de imprensa no sentido em que esta permite que outras maneiras de se ser moçambicano, de pensar Moçambique e de organizar a vida tenham espaço legítimo para se exporem e, quiçá, procurarem convencer outras pessoas da sua beleza. Do ponto de vista político, contudo, a liberdade de imprensa articula-se com o pluralismo lá onde ela garante que outros projectos de governação encontrem espaço para serem expostos sem que, por isso, os seus autores tenham que sofrer represálias, ou, para dizer as coisas moçambicanamente, sem que alguém parta as pernas dos seus autores. A liberdade de imprensa protege, neste sentido, o direito que cada um de nós tem de não concordar com quem detém o poder, e de poder dizer isso de forma aberta, ainda que com o devido respeito.

É neste ponto onde intervém a terceira coisa fundamental, nomeadamente a cidadania. Cidadania não é apenas ter um bilhete de identidade, pagar impostos e votar. Cidadania é fazer parte da esfera pública, isto é ter interesse nos assuntos que dizem respeito a todos e ter a liberdade de se manifestar de forma crítica em relação a esses assuntos. Moçambique é uma república e isso significa que a participação de cada moçambicano na coisa pública precisa de ser garantida. A prerrogativa que cada um de nós tem de interpelar criticamente aquele que governa constitui uma manifestação essencial do republicanismo. Com a liberdade de imprensa, todo o moçambicano tem a possibilidade de interpelar quem governa.

Há quem pense que quando um governo é interpelado existe a possibilidade de se comprometer a governação. A crítica, diz-se, pode diminuir a confiança no governo e isso pode fazer com que as pessoas sejam menos disciplinadas na maneira como seguem orientações. A verdade, porém, é que uma interpelação crítica só enfraquece um governo que já é fraco. Pouco surpreendentemente, são normalmente governos fracos que nutrem hostilidade à crítica. Com efeito, quanto mais fraco for um governo, maior é a sua necessidade de controlar a informação e maior é o seu investimento no silenciamento da crítica. Um governo forte, pelo contrário, sai sempre mais fortalecido da interpelação crítica, pois através dela ele tem a possibilidade de ver aquilo que talvez não via e, se estiver de acordo, claro, corrigir as coisas.

Eu, por exemplo, acho que o programa SUSTENTA foi mal concebido. Gente próxima do governo tem muitas dificuldades em ouvir isto. Por essa razão, essa gente reage irada e sempre com aquela suspeita de que quem critica o programa o faz por não gostar do governo, do ministro ou, pior ainda, por não querer o fim da fome no País. Mas a questão não é essa. O programa definiu mal, em minha opinião, o problema da productividade agrícola no país. Esse problema não me parece ter nada a ver com as cadeias de valor, mas sim com o facto de muita gente nas zonas rurais não ter alternativa à agricultura de subsistência.

Ademais, o programa foi mal definido, também, por assentar numa solução que exige um estado muito mais eficiente do que o nosso, infelizmente, é. O meu receio é que tudo isto termine num desastre humanitário e político. Não seria a primeira vez. A socialização do campo ensaiada nos anos imediatamente a seguir à independência teve também um fim desastroso justamente por ter definido mal o problema. Agora, essa é a minha opinião. Não significa que eu tenha razão e que aqueles que conceberam o SUSTENTA sejam idiotas. É apenas a minha opinião. É minha responsabilidade como cidadão interpelar o governo. Se o governo achar que vale à pena incorporar o que eu digo numa revisão dos seus planos, tudo bem. Se achar que não, também tudo bem.

O que um governo não pode fazer, contudo, é abafar a articulação dessas outras opiniões, ou partir do princípio de que quem não concorda, está contra o governo ou contra o país. Infelizmente, o nosso governo é apoiado por muita gente que promove esta postura problemática. Mas ao fazer isso priva o governo e, em última instância, o País inteiro, da assessoria gratuita que a cidadania activa garante. E é justamente isso que a liberdade de imprensa ajuda a proteger e a garantir porque ela é um recurso importante à governação.

É neste conjunto de razões que reside a importância da existência do jornal O País. Ele não existe apenas como fonte de rendimento de quem o faz. Ele existe para participar na construcção dum Moçambique melhor porque esse Moçambique só é possível onde se respeita a liberdade de expressão, o pluralismo e a cidadania. A efeméride que o jornal festeja não poderia ser mais auspiciosa numa semana em que um partido que reúne algumas das pessoas mais hostis à liberdade de expressão se reúne sob o lema “Unidos fazemos Moçambique desenvolver”. Numa sociedade civilizada, a unidade não é unanimidade. É o reconhecimento de que ninguém detém a verdade e, por isso, só na deliberação é que se chegará lá.

Dou os meus parabéns ao jornal pela sua perseverança. Não é a verdade como notícia. É a notícia como convite ao debate de ideias. Mas não vou ser eu a estragar o slógan…

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