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A Ilha dos Poetas

Antigo porto, feitoria, entreposto, desterro, presídio e até mesmo lupanar, foi a primeira capital de Moçambique, marco talassocrático do Índico, conheceu o apogeu e o ocaso, a distinção e o opróbrio, a riqueza e a pobreza. Demandada por todos, desde sultões a vice-reis, de almirantes a soldados, de mercadores a negreiros, de clérigos a sátrapas, foi através dos poetas que aprendi a amá-la e a cultuá-la. Percorrendo, sobretudo, comovidamente, a iridescente luminosidade e a melancólica obscuridade dos versos de A Ilha de Próspero de Rui Knopfli, a quem se deve a invenção da mitologia poética da Ilha de Moçambique.

Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. / Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. /As gentes calam na voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. /Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique,/ e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento.”

Este poema – “Ilha Dourada” – está no primeiro livro do poeta, O País dos Outros, editado em 1959, e servirá, anos mais tarde, de leit motiv para o roteiro poético que haveria de empreender. A Ilha de Próspero – Roteiro Poético da Ilha de Moçambique conheceu a luz em 1972. Poemas e fotografias do autor de Mangas Verdes com Sal, bem como um prefácio luminescente do historiador Alexandre Lobato.

Rui Knopfli: “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu fazia. (…) Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas, /caminhos sempre abertos para o mar,/ brancos e amarelos filigranados/ de tempo e sal, uma lentura/ brâmane (ou muçulmana?) durando no ar,/ no sangue, ou no modo oblíquo como o sol/ tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho/ com a luz da eternidade.”

Atente-se a estes versos do poema “Muipiti”: “no modo oblíquo como o sol/ tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho/ com a luz da eternidade.” São versos lapidares. Como o são os versos de um outro grande poeta, neste caso Alberto de Lacerda, que nasceu justamente na “L`isle joyeuse”, como lhe chama. O poema “A minha Ilha”, recolhido no seu belíssimo livro Exílio: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam/ No meio da rua como peregrinos/ Dum mundo mais aberto e cristalino.”

Estes cristalinos versos foram escritos a 1 de Março de 1963, há 55 anos, na revisitação da Ilha, que haveria de merecer outros versos igualmente luminosos: “Ó minha Ilha de Moçambique/ Perfume solto no oceano/ Como se fosse em pleno ar”, escreveria o poeta no dia seguinte. Li, fascinado, estes e outros poetas: Glória de Sant´Anna, em “Bairro Negro”: “As pequenas casas maticadas/ erguem-se de longe (de séculos, de antigas datas) / contra o mar e as ondas e as algas.” A Ponta da Ilha, sufragada em belíssimos versos de Rui Knopfli, Alberto de Lacerda, Glória de Sant`Anna, Orlando Mendes, entre outros.

Virgílio de Lemos escreveu abundantemente sobre a Ilha. Pertence-lhe, no entanto, esta formulação sinóptica do espanto: “Ilha/ que dorme na utopia/ pródigo mito/ da poesia.” Lapidar! Está tudo dito!

A Ilha como utopia. Outros versos, outras iridescências. Muito antes, a IIha concitara o estro de Tomás António Gonzaga (“A Moçambique aqui vim deportado. / Descoberta a cabeça ao sol ardente; / Trouxe por irrisão duro castigo/ Ante a africana, pia, boa gente”) ou José Pedro da Silva Campos Oliveira. Muitos anos mais tarde, Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, da minha geração, expenderam as suas liras cantando-a. Outros também o fizeram, descubro-o agora:  Mia Couto, Calane da Silva. Rui Knopfli acompanhou Jorge de Sena, em 1972, a uma viagem à Ilha, na qual o segundo presta tributo a Camões (“Camões na Ilha de Moçambique”, um belíssimo poema) -, o primeiro o invocara, entre a elegia aos monumentos, à rememoração das lápides, o preito às igrejas e aos minaretes, ou a alusão expressa aos ocultos filhos de Caliban, na Ponta da Ilha. “Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes/ e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto.”, escreveria Orlando Mendes, em “Minha Ilha”. Campos Oliveira, Orlando Mendes e Alberto de Lacerda nasceram naquele lugar mágico.

Luís Carlos Patraquim: “Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagem de despudor sem mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo gerúndio doutra estória às avessas da história, onde não me vissem mais, quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.”

Luís de Camões cita-a pela primeira vez em língua portuguesa na sua egrégia obra – Os Lusíadas: “Esta ilha pequena, que habitamos, / É em toda esta terra certa escala/ De todos os que as ondas navegamos, / De Quíloa, de Mombaça e de Sofala, / E, por ser necessária, procuramos, / Como próprios da terra, de habitá-la; / E, por que tudo enfim vos notifique, / Chama-se a pequena ilha – Moçambique.”

Reli recentemente toda a obra poética de José Craveirinha e descobri uma referência à Ilha muito antiga: (“ambos entristecidos ao galope de pés humanos/ sem ferraduras mas puxando riquexós/ só de ver puxar nós também puxamos/ nas transpiradas ruelas antigas/ da Ilha de Moçambique”). Tinha na memória “O Mote de Camões”, mas no poema “Canto do nosso amor sem fronteira”, a que pertencem os versos citados, Craveirinha alude à Ilha. “O mote de Camões” perfaz, por assim dizer, o diálogo magistral entre dois dos insignes cultores da língua portuguesa e da Ilha de Moçambique.

José Craveirinha: “Exausto/ de insónias/ peço ajuda ao bom Luís Vaz de Camões.// O então malquisto exilado português de Muipiti/ senhor de ínclitos dotes na arte do soneto/ generoso empresta-me seu método/ de falar com os bruxos/ no ambíguo tempo/ dos homens”.

“A Ilha dos Poetas” é o título de um poema meu antiquíssimo no qual tentava homenagear, no entusiasmo juvenil que me movia, os grandes poetas que tinham, antes de mim, escrito sobre a Ilha de Moçambique. Foi Luís Bernardo Honwana que me lançou o repto, de co-organizar, com o António Sopa, A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas, antologia poética sobre a Ilha de Moçambique. Aquela lírica empreitada permitiu-me alargar o meu parco conhecimento da aventura poética que a Ilha desencadeara. Circunscrevemo-nos a textos de língua portuguesa, aduzindo-lhes parco material em língua inglesa e duas ou três canções macuas. Havia, e provavelmente persiste, uma visão lacunar sobre a Ilha de Moçambique. Há um quarto de século, quando trabalhei sobre a Ilha, tinha a esperança de que uma recente proclamação da UNESCO, como património da humanidade, haveria de franquear-lhe outras possibilidades para o seu destino. Escrevi então no prefácio do livro: “A notícia de que a Ilha de Moçambique agonizava na modorra do tempo e sob as adversidades que obstam ao incremento de um projecto de sociedade na minha pátria sempre me derrotava num impotente dilaceramento. Mas o conhecimento de que esta fora proclamada recentemente património da humanidade pela UNESCO reacendeu em mim essa crença (já obscura) de que aquelas ruínas, que amortalhavam o monumento singular da nossa identidade, teriam remissão”. A esta distância, creio não estar longe da verdade se asseverar que esse destino persiste improficiente ou essa possibilidade adiada, como são adiadas as nossas mais obstinadas esperanças. A sagração da Ilha nunca foi, por conseguinte, ao arrepio do seu abandono. Antes pelo contrário, actuou como consciência de que era precisa fazer algo. Também por isso, esta alusão, esta celebração, não pode nem deve ignorar quem lá habita.

Não cultivava, a despeito, a veleidade de que aquele livro ou um outro qualquer pudesse fazer muito para intervir directamente no melhoramento da vida daqueles que lá remanescem, nem esse era o seu escopo, mas tenho a ilusão (uma vez mais) de que talvez tenha tinha do lastro que lançou sobre o génio dos poetas alguma benesse.  Li recentemente muitos outros poetas que sobre a Ilha se debruçaram: um poema de Mia Couto ou os versos de Calane da Silva, também eram inéditos para mim. Conhecia o fascínio do Eduardo White, o seu conhecido encantamento pelo Oriente, e nessa busca ele não ficara incólume ao fascínio pela Ilha de Moçambique. Segue-se-lhe Sangari Okapi, entre outros. Hoje abundam textos sobre a Ilha, da época em que organizámos aquela antologia – cotejamos, certamente, os nomes mais importantes e que ainda hoje permanecem – mas agora podemos ter o benefício de poetas mais jovens.

Eduardo White: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que ao Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo habita ainda a tua imagem, o m'siro purificado da tua beleza e das tuas sedes, a rosa dos ventos, o sextante dos tempos, em tudo acordas de repente como se ardesses naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas, escravos ausentes, tudo o que esta Ilha que ao Norte, nos pode lembrar. Deito-me, assim, sobre o Sol com a praia funda em meu pensamento.”

Eduardo Pitta escreveu sobre a Ilha e não sei explicar a sua exclusão na nossa antologia, nem em recolhas ulteriores. Pertencem-lhe estes belos e melancólicos versos: “Aqui fazemos o circuito/ inevitável das coisas ociosas/sem sentido.”. Pitta, nascido em Lourenço Marques, é assumidamente poeta português. Isso não seria razão bastante para não incluí-lo. Camões, antes de todos, está representado. À época não tinha sido escrito o belíssimo poema “Áfricas”, do meu amigo Luís Filipe Castro Mendes – incluído no seu livro Modos de Música, senão estaria certamente antologiado. Lembro-me de conversarmos sobre o maravilhamento comum da Ilha aqui há muitos anos. Como me recordo da conversa emocionada com o Francisco José Viegas, que a visitou depois e escreveu um belíssimo texto sobre ela. Castro Mendes ou Francisco José Viegas são dois nomes importantes da literatura portuguesa. A Ilha não é, por conseguinte, apenas património poético nosso. O notável poema, que nobilita a Ilha, e que a seguir transcrevo, demonstra que a Ilha pertence a todos.

Luís Filipe Castro Mendes: Não se faz da memória um novo amor, / por isso nada em mim te procurava. /Não te sonhei sequer quando criança, /teu nome não brilhava como estrela.// Porque amor é só feito de surpresa, /mais nos agarra quando nunca o vimos. /Para mim teu país no mapa era/ uma confusa mancha de incerteza. // A guerra, a solidão, fim do Império, / vieram dar o rosto da tragédia/ ao que eu nunca sonhara como história // que fosse pessoal. Coube-nos todo/ este peso da História e esta surpresa/ de te reconhecer como eu respiro.”

Paixão adolescente, memória ou novo amor, canto sem fronteira, paraíso onde os cães não ladram, e as crianças brincam como peregrinos, exílio ou refúgio perdido, utopia, demandada por todos, disse-o, desde sultões a vice-reis, de almirantes a soldados, de mercadores a negreiros, de clérigos a sátrapas, esta Ilha convoca e invoca uma sintaxe poética marcada pela exuberância das suas cores, pela beleza das suas mulheres ou pela alegria das suas crianças, e pela nostalgia das suas sombras, das suas ruas, onde o sol toca as coisas ferindo-as de mansinho, com a luz da eternidade, ou na cidade de Macúti – permitam-me a exorbitância da linguagem – onde não se pode obliterar as precárias condições de vida de muitos que nela habitam. Lugar de encontro, portanto, onde se fala árabe, swahíli, macua, português, eu sei lá…! lugar da diversidade e, não raro, da adversidade, utopia, disse-o, mas também distopia, hierático mosaico cultural moçambicano, sempre por descobrir e celebrar. Ilha de poetas, de grandes poetas, digo. Se a Camões, que nela se atardaria dois anos, pertence a primeira citação na nossa língua, devemos, sobretudo, a Rui Knopfli e ao seu nobilíssimo A Ilha de Próspero (reitero) esta singularíssima mitologia poética que se engendrou à volta Ilha: “À nossa volta sobram os templos e os deuses.” (Knopfli dixit.)

Termino, este texto redigido ao som de Mama Mosambiki, dos Eyuphuro, e com a poderosa e melancólica voz de Zena Bacar, citando uma canção popular, numa versão livre em português, a partir de uma transcrição em macua, ambas estão na aludida antologia A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas: “De longe esta Ilha parece pequena/ Esta Ilha é grande. / Tem longa história desde os habitantes aos seus monumentos/ Não nos é possível contar-vos tudo quanto temos/ Pois há outros que querem também falar-vos/ Se ainda quereis ouvir algo nosso/ ficais muito tempo nesta Ilha. / Assim mostrar-vos-íamos a rua de fogo/ aonde vós nunca chegastes.”

 

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