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A escravatura actual

Por José Paulo Pinto Lobo

 

Vivemos num tempo de escravatura. Não concordam com a afirmação? Eu explico.

Defendo que vivemos num tempo dicotómico entre a escravatura do sucesso e a escravatura do emprego, cuja conjugação deriva quase irremediavelmente numa escravatura de sobrevivência.

Na Escravatura do Sucesso estamos agrilhoados ao êxito contínuo, ao pular de emprego para emprego, à progressão na carreira, ao carro topo de gama (ou ao four by four como se diz na minha terra), às viagens de férias para destinos paradisíacos, aos acessórios de luxo, às malas e carteiras, aos telemóveis de último modelo, aos relógios, às roupas de marca, às jóias, ao frequentar os espaços in, com gente bonita, seja lá o que isso for.

A pressão por nós sofrida faz com que haja um efeito dominó em relação aos nossos filhos, sobrinhos, netos. Queremos, mais, exigimos que eles sejam os melhores, na escola, nas actividades extra-escolares, em tudo, porque sendo os melhores terão mais hipóteses de vencer na vida. Tudo se resume então à competição com os outros por um lugar ao sol, de preferência numa cobertura ou num condomínio fechado.

Como objectivo talvez até não esteja errado, valorizando a responsabilidade, o esforço e a dedicação que se deve trazer para a aprendizagem e para o desempenho, de forma a se obter a correspondente recompensa, mas preocupamo-nos verdadeiramente com que os nossos descendentes sejam também melhores pessoas?

A pressão que exercemos, conjugada com a que a própria escola exerce é por vezes tal, que as crianças deixam de o ser para se tornarem em máquinas ou autómatos de trabalho, escravos também eles, desde cedo.

Isto quando as crianças têm a sorte de frequentar uma verdadeira escola e não terem aulas debaixo de um cajueiro ou em salas e instalações completamente degradadas e sem condições adequadas para a aprendizagem. Escola não é apenas salas de aula…

Que estratégias se utilizam para se trepar nesta voragem ascensional, para a maioria das pessoas pouco importa. Bem… tentamos transmitir alguns valores e princípios, mas esquecemo-nos muitas vezes que o verbo a conjugar não é TER mas sim SER.

Mas no mundo de hoje se tens, és, se não tens…

Na melhor das hipóteses, quedamo-nos como escravos do ser para ter, ainda assim escravos do sucesso, debatendo-nos pela sobrevivência no topo, numa luta contínua e desesperada para de ali não sair, para nos mantermos junto daqueles que consideramos ser os nossos pares.

Na base da pirâmide a escravatura é outra, mais angustiante.

Na Escravatura do Emprego vivemos em permanente desassossego, no pavor de sermos dispensáveis, de se ser excedentário, sujeitos à ditadura dos números, sejam eles dos lucros empresariais ou da falta deles, seja dos orçamentos nacionais exíguos (para alguns), mesmo que sejam resultado da incompetência de personagens do topo, num terror persistente de perdê-lo e, para quem tem mais de 40 ou 45 anos, passar a fazer parte do que eufemisticamente se designa de desemprego de longa duração.

Longa duração? Qual longa duração, na Europa melhor seria dizer desempregado definitivo!

É também fundamental manter os escravos do emprego sob coação constante, sob a ameaça do despedimento, para que aceitemos, sem estrebuchar muito, as reduções salariais, o aumento das horas de trabalho, as horas extra sem remuneração, agradecendo encarecidamente a quem nos proporciona, ainda, um posto de trabalho, que nos permita pagar as prestações da casa, do carro, do televisor.

Nos escravos do emprego, a pressão sobre as crianças é praticamente inexistente, quer pela falta de tempo das famílias, quer pela falta de recursos para pagar apoios escolares, explicações e outras actividades ocupacionais para as mesmas, garantindo assim uma adequada reprodução de novos escravos desta camada.

Para a maioria das crianças moçambicanas a pressão poderá ser de outro tipo. Desde a obrigatoriedade de cuidar dos irmãos mais novos, passando pela ajuda no sustento da família, até ao flagelo dos casamentos prematuros.

Muitos tentamos sobreviver com dignidade, como disse há tempos o meu amigo Manoel Carlos, não numa tentativa de sobrevivência num determinado estrato social alto mas sim no afã de garantir a nossa própria existência como gente, como ser humano.

Nem sequer me refiro a muitos dos meus compatriotas que lutam apenas por comer uma vez por dia!

O Poder, no topo da pirâmide, utiliza os mesmos métodos dos antigos romanos, ou seja panem et circenses com exactamente o mesmo objectivo, o de distrair os escravos da base da sua situação confrangedora e, em situações de crise, na falta do pão, “toma lá mais circo”.

Exemplos abundam, desde o omnipresente futebol, em Portugal muitas vezes notícia de abertura nos telejornais, à antevisão e debates dos jogos em todos os canais, passando pelos debates políticos e tempos de antena dos comentadores da actualidade, às festas luxuosas das redes de televisão, onde os papalvos se babam na fronteira das passadeiras vermelhas, até aos concursos de fama instantânea, tipo pudim-flan, alguns de gosto mais duvidoso que outros, mas que dão a ilusão da possibilidade de ascensão meteórica ao topo da pirâmide.

Se isso não chegar, tomem lá com as revistas de bisbilhotice e fofoca, com os jornais desportivos (por sinal os jornais com mais vendas em Portugal) e com os programas com artistas de música, antigamente denominada de pimba e agora de popular, onde também alguém pode ganhar alguns milhares de euros, pagos por quem ligar para determinados números telefónicos. Não, não me enganei, não é a quem ligar, mas sim por quem!

Alguns amigos me contestam e me dizem que o mundo é assim e sempre será, porque se baseia nas melhores características da espécie humana, isto é, na inveja, na mesquinhez, na intriga e na maledicência. Podem chamar-me de ingénuo, idealista, sonhador, mas ainda me revejo nos versos de António Gedeão do poema “Pedra Filosofal”:

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

 

 

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