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“A discrepância dos níveis de vida justifica as guerras e conflitos”

Em grande entrevista concedida à STV, o académico e Filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, trouxe as suas reflexões sobre a exploração dos recursos naturais em Moçambique, a acção terrorista, centralizada na região norte de Cabo Delgado, desde a segunda metade de 2018, que preocupa bastante a nação moçambicana, o terrorismo em Cabo Delgado e traçou os caminhos a seguir ou a evitar, em relação à abertura de portas para o apoio internacional. A seguir, transcrevemos o essencial da entrevista.

Olhando para a génese do conflito, numa reflexão ampla a nível mundial, como é que se explica que, em África, sobretudo, em países em via de desenvolvimento, a exploração dos recursos naturais seja problemática?

Nós temos que nos indignar com aquilo que acontece em Cabo Delgado. Herdámos este país daqueles que nos precederam e se sacrificaram para que se tornasse independente e temos de que garantir que ele se mantenha intacto.

A descoberta de recursos naturais pareceu ser uma porta de entrada para melhoria das condições existentes, mas tem-se revelado uma maldição para o nosso continente. As principais lutas e conflitos em África estão ligados à exploração de recursos naturais e, infelizmente, estes problemas estão a chegar aos contornos do nosso país.

Quando descreve a exploração dos recursos naturais em África como uma maldição, qual relação se pode conjecturar em termos de sistemas políticos africanos e a exploração dos recursos naturais?

Antes de ser uma questão africana tem de ser como a economia mundial se desenvolve. No século XX, a subida dos Estados Unidos como a principal potência económica mundial provocou uma metamorfose fundamental; o país norte-americano fez depender o valor do dólar do petróleo, mudando a convertibilidade com o ouro.

Depois com as independências africanas, Roosevelt propôs a Churchill a abertura do espaço africano para o comércio mundial, enquanto o continente não estava em condições de comercializar outra coisa se não fossem os recursos naturais, tornando-se, assim, num terreno de caça, lugar de caça.

Os países sobre tutela da França e Grã-Bretanha tem menos conflitos, porque têm alguém que vela e zela pelos seus próprios interesses e têm um monopólio de espaço, o que faz com que os outros tenham cautela, não com o povo africano, mas em relação ao dono do “espaço”. Os espaços, que ficaram sem “dono” por conta das lutas de libertação nacional se tornam arenas de conflitos e os regimes políticos africanos sucumbiram o mesmo tipo de azáfama das potências ocidentais nesta corrida cega em volta de riqueza e recursos no nosso continente.

E sucumbiu também melhor estratégia ou diretrizes para gerir a exploração destes recursos, considerando também que África é tida como berço de algumas ciências. Onde imperou o desenvolvimento do pensamento africano para, como uma comunidade, a África conseguir unir-se e posicionar-se em detrimento de um conhecimento pragmático para sua própria comunidade?

Nós temos de deixar um pouco o romantismo, não é porque os nossos antepassados tenham desenvolvido ciência que nós não podemos responder com as ciências dos tempos modernos ao que somos confrontados. Primeiro, temos de administrar o espaço, segundo, satisfazer as necessidades das populações. No continente africano, encontramos direcção do governo que não tem conhecimentos técnico-científicos para fazer isso; existem administrações políticas que não têm capacidade de dar de comer à sua população.

Então, o conhecimento ainda é deficitário no continente africano para gerar resultados?

Olhemos para a situação mundial na actualidade, qual vacina terá proveniência africana, que esforço poderá ser feito a partir de Moçambique para responder às suas próprias necessidades e aos seus desafios?! Nós não estamos preparados o suficiente para fazer face aos desafios com que estamos confrontados.

As decisões que os políticos africanos tomam geram exclusão de uma grande franja da sociedade que, depois, emergem os conflitos. Como é que se explica essa relação, poder político, exclusão e também importância do conhecimento?

O grande problema de Moçambique é que foi obrigado, em circunstâncias históricas, a aderir a uma ideologia que correspondia a um dos lados da guerra durante a Guerra Fria e essa mesma ideologia punha-nos em conflito com os nossos vizinhos regionais, cujas políticas seguem o sentido contrário, refiro-me à Rodésia do Sul e à África do Sul do Apartheid. Esta visão unitária do país foi-se perdendo com a vitória do liberalismo, através dos acordos de Roma.

Com caracterização de África, sobretudo, Moçambique, considera que estamos numa encruzilhada sem saída?

Estamos numa encruzilhada, mas não sem saída. O grande desafio político é recuperar o que tínhamos e, através do mesmo, construir algo melhor para o futuro.

O potencial de recursos existentes em Cabo Delgado é conhecido já há alguns anos. Como é que se explica que, logo após a independência, com a informação da existência do potencial de recurso, não tenhamos traçado um plano para exploração?

Nós precisamos de saber das condições em que o país se encontrava no período da descoberta. Que pessoas e que recursos tínhamos para lançar uma exploração de petróleo?! Que possibilidades tínhamos, com a guerra, para nos concentrar num projecto tão grande?!

Do ponto de vista económico, Moçambique de 1975 opta por pequenos passos e projectos, neste caso, massificação da escola, preparar os homens para que, no futuro, pudessem ser os donos das acções e pequenos projectos agrários para tirar as pessoas da dependência alimentar.

O país já estava preparado quando avançou com o projecto de prospecção do gás na bacia do Rovuma?

O país não estava preparado, pois estava dependente das instituições internacionais. Até os ministérios funcionavam com base nos centros de aconselhamento criados internamente pelas potências multi-nacionais.

Como país, como podíamos ter-nos preparado para iniciar essa exploração?

Deveríamos ter direcionado jovens a terem uma formação mais ligada a esse tipo de recursos, não o fizemos, nem estamos a fazê-lo com seriedade hoje. As nossas Universidades podiam priorizar os cursos ligados a esses meios, mas também não o fazemos.

Nós estamos a explorar gás sem conhecimentos técnicos, sem recursos humanos, nem capacidade de investimentos que façam de nós os protagonistas daquilo que acontece no nosso próprio espaço.

A organização geopolítica mundial é relevante quando se trata de exploração de recursos naturais. Que alianças devia ter feito Moçambique sendo novo neste xadrez?  

Não estamos em face a uma investida dos grandes grupos internacionais com uma visão global e tudo que estamos a fazer é sucumbir as investidas e, possivelmente, tentar gerir os vários interesses que se abatem sobre nós.

Qual é a sua teoria sobre a integração de moçambicanos no terrorismo em Cabo Delgado?

Socorro-me da discrepância económica existente na região norte de Moçambique, onde existem os recursos, mas só se vêem os mesmos a passar. Como sempre digo, Maputo não pode continuar capital de Moçambique só por deter a localização dos poderes legislativos, refiro-me à Presidência da República e mais.

Acho que a discrepância dos níveis de vida justifica as guerras e os conflitos. E não acredito que a razão de fundo do conflito a que estamos assistir tenha a ver com islão, mas sim com a questão do petróleo, a questão do gás e mais recursos que estão na região, sem esquecer a capacidade de mobilização e capacidade económica.

Há académicos pesquisadores que defendem que os novos-ricos com ligações internacionais é que fomentam esses novos conflitos. Esta concepção parece-lhe verdadeira?

Não posso afirmar, mas também não excluo, depois dos acordos de paz, nós passamos a confundir democracia com “dolacracia” e, se existe algo que dá dólares no mundo e faz funcionar as economias inteiras, é guerra.

Os bispos católicos apontam a falta de esperança e frustração como forças significativas para criar esta instabilidade. Olhando por esse prisma, por onde é que se pode começar a agir?

Nós não podemos permitir que o povo continue a ser barbaramente assassinado e que se desloquem populações inteiras esvaziando quase um distrito. A accão militar forte é a única coisa que nos pode proteger deste desconhecido terrorismo, porque, infelizmente, não há espaço para diálogo.

Acha que o país tem capacidade, considerando o histórico de guerra, logo depois do momento de paz, onde a questão das armas foi sempre posta de lado?

Nós não ganhámos a guerra militarmente, diferente do que sempre dizemos que é para dar mais força às novas gerações. O campo de batalha não era militar, era político e nós conseguimos chegar à independência.

Nós somos um exército fraco e quase inexistente. Ponho-me a rir quando vejo alguns Comandantes e Generais por conta da postura física, porque não é só o cargo que ele assume, mas também cumprir as acções que são idealizadas para sua área de operação.

Onde podemos encontrar o suporte para avançar com essa perspectiva?

Nós pensamos em exércitos fortes, Pensemos, primeiro, no Zimbabwe. O exército de Ian Smith entrou, em 1972, num acordo chamado “Alcora” com a África do Sul, para ajudar Portugal  na luta contra a FRELIMO que, no momento, se debatia a questão da independência do país, portanto é um exército forte e com uma força aérea muito desenvolvida.

Também temos conhecimento da capacidade das forças militares francesas que são a potência da região. Mas, o histórico da França é catastrófica para África; onde a França chegou, não simplesmente se instalou como uma força militar superior às forças militares dos países em presença. Hoje, tu não podes chegar à Senegal, Costa do Marfim e fazer política teleguiada pelos interesses franceses a partir de Paris.

Como é que interpreta a expressão do Presidente da República quando diz que os que vierem de fora têm que vir para nos apoiar?

Imagino que ia no sentido de dizer que isto é Moçambique e temos que preservar o país, ele conhece o perigo que comporta a presença de militares estrangeiros no país.

Está quase claro, a cumplicidade da França no massacre em Ruanda e os mesmos vão pedir desculpas daqui a dez anos pela invasão na Líbia. Não gostaria de que acontecesse a mesma coisa em Moçambique e ficássemos à espera que nos venham pedir desculpas daqui a vinte anos. Talvez necessário que se arranje maneira de garantir que não se façam barbaridades com esse tipo de cumplicidades e a gente pode viver bem, sem pedir desculpas a ninguém.

A outra força que nós temos são os Estados Unidos, que já deixaram disponibilidades e disseram que estão prontos para nos ajudar, mas os Estados Estados Unidos querem Nacala já há muitos anos. Quando eles vierem, será que vão sair?! Ainda não saíram do Japão, mas a guerra acabou em 45; não saíram da Alemanha e a guerra acabou em 45; não saíram da Itália e a guerra acabou em 45. Então, vão chegar a Moçambique, ajudarem-nos no combate dos terroristas e, depois, saírem; deixarem que Moçambique possa reconstruir-se como país? Esta é a grande dificuldade, Moçambique sozinho não pode.

Se não podemos contar com as grandes potências, o que se pode esperar em termos de resposta que SADC nos trará?

Moçambique não tem força sozinho, nem dispõe de força regional. As forças de apoio apresentam perigo. Mas, temos que acabar com conflito militar e, para tal, temos que ter uma política nacional virada, completamente, para o interior e pensar que não há países na dimensão do nosso com mega-projectos. Segundo, temos que pensar num país mais fraterno, mais igual. Neste momento, Moçambique é um país racista e tribalista.

Estava claro, nas últimas eleições da FRELIMO, que tinha que ser alguém, não do sul, mas do centro ou do norte.

Os países não se governam escolhendo pessoas pela sua proveniência, pela sua família, mas sim pela sua capacidade e valores.

É preciso que comecemos a pensar em sair da dimensão de concorrência entre países e transformar a SADC num espaço de cooperação económica, em que, quando há um projecto no Rovuma, tem que ser para o benefício de Moçambique e Tanzânia e, se possível, para outros que se encontram na mesma região.

Acredita na concretização deste sonho?

A vontade é dos dirigentes, quando não temos músculos nos braços, temos que usar os músculos da cabeça.

Nós temos que pensar, ou seja, equacionar os músculos da cabeça e a vontade e pensarmos à frente.

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