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A bolsa

A poucos metros, firme impõe-se um hotel de cinco estrelas com os seus enormes pavilhões orientais. Mais adiante está o aeroporto repleto de aviões e helicópteros de várias bandeiras. Aeronaves que mostram que a Beira não está sozinha. O mundo chora as lágrimas da Beira.

A cidade está de joelhos, mas casmurra nega a vergar-se. Reergue-se. A muito custo. As árvores são disto o testemunho. A maioria das copas não mais são verdes, mas sim castanhas. As raízes não resistiram. Os troncos jazem nas bermas. À espera do tempo.

Beira chora os seus mortos. Ecoa o esgar da dor, do pânico, da desolação e da incerteza no amanhã. Quando o sol se esconde, a cidade transfigura-se num enorme monstro que, na escuridão, resmunga e movimenta-se ao ritmo das suas gentes que buscam chão para continuar a sonhar.

Com os seus dez anitos de idade, a menina Neta jaz sonolenta no canto de um enorme esbranquiçado de lona. Ela abstém-se de uma Beira, de um aeroporto ou de um hotel de traço chinês totalmente desconhecidos.

 Os seus olhos não mais cintilam. Sulcam cada pedaço deste amplo espaço repleto de tendas que se espalham que nem os cogumelos de Metuchira. Contempla cada criança esfomeada, cada homem deprimido e cada mãe que, presa nas teias do silêncio, entra e sai das tendas. Todos buscam alimentação, água, calor e amparo.

O seu olhar curva-se e detém-se numa tenda marcada por uma enorme cruz de cor vermelha. Entram e saem crianças e adultos com marcas de fome e desidratação. São pessoas que, como ela, o ciclone desenraizou-lhes e hoje procuram a reconciliação com o horizonte. 

Indivíduos bem nutridos e falando todas as línguas do mundo transformam-se nas pessoas mais atarefadas que alguma vez viu na sua ainda curta vida. Andam para cima e para baixo procurando cavar sobrevivência para centenas de almas.

A menina Neta não se mexe. Traja um vestido branco encardido que vai até um palmo abaixo dos joelhos. Os pés descalços e o cabelo desgrenhado não escondem a ingenuidade da idade que a impede de se preocupar em vaidades femininas. O seu foco é apenas o pensar no amanhã e em conservar uma pequena bolsa que traz protegida pelo sovaco.

As recordações de Metuchira consomem-na. Pensa no dia em que o ciclone chegou, tirou-lhe a mãe e a irmã e deixou-lhe com a bolsa debaixo do sovaco.

Lembra-se do pai que ao tentar, aos gritos, salvar-lhe, foi levado pelas torrentes evadidas do rio. Foi para sempre. Nem um adeus sequer. Deixou lhe apenas com a bolsa debaixo do sovaco.

Recorda-se da forma como foi puxada da árvore em que estava empoleirada para o interior de um barco de borracha cheio de gente desesperada e assustada. Ela com a bolsa debaixo do sovaco.

Na retina conserva a longa viagem de Nhamatanda para a grandiosa, mas destruída, cidade da Beira. Foi na carroçaria de um camião das “Calamidades”. Na sua pequenez, ela esteve lá entalada entre tantas outras almas tão devastadas quanto ela. Sempre com a bolsa debaixo do sovaco.

A menina continua sentada. Corroí-lhe a ausência dos pais e dos irmãos. Está só no mundo, mergulhada no meio daquela gente muito simpática, mas que lhe é estranha. Não soluça, mas um par de lágrimas não resiste e galga-lhe as faces sedentas de carinho maternal.

O céu é apenas azul. O infinito do tempo não atravessa os seus dez anitos, fica nebulado na esquina que se segue. A menina não tem cabeça suficiente para ler o amanhã. Tem apenas um coração para sofrer e um par de olhos para chorar.

Não quer os brinquedos com que (os doadores) lhe encheram. Não quer as tendas que se estendem à sua frente. Não quer o pão e leite que lhe dão todas as manhãs. Quer a mãe. Quer o pai. Quer os irmãos. Chora. A pequena bolsa sempre protegida pelo sovaco.

Uma mulher não só vê, mas também lê o choro profundo da menina. É dessas mulheres de botas, calças jeans, camisete, boné e colete com estampado de uma organização internacional qualquer. Aproxima-se e dá-lhe um abraço.

«Por que choras?»

A menina não responde. O seu choro não explode, mas mistura-se com intervalos de soluços.

«Por que choras, minha querida?», a voz da mulher não disfarça a ternura e o sentimento de compaixão que a domina. O coração da menina lê isso e impele-a a abrir-se e a deixar que os seus lábios timidamente e com uma voz entrecortada pronunciem: 

«Quero a minha mãe!»

A mulher não diz palavra. Abraça a menina com mais força. Um abraço bem apertado que atravessa o contacto físico e atinge a pequena alma. Conforta-a. A menina quer retribuir o abraço, mas não quer que a pequena bolsa se solte do sovaco.

«O que levas na bolsa?», indaga a mulher. Solta um ligeiro sorriso e afaga-lhe os cabelos crespos.  A menina volta os olhos para o chão. Não pestaneja. Os grãos de areia que contempla parecem ser a única fonte da vida. Respira fundo e responde com um sussurro:

«Comprimidos.»

«Que comprimidos são esses?»

«Minha mãe deu-me antes de ser levada pelas águas», os olhos da menina agora arregalam-se e lacrimejam, «ela disse que devia tomá-los todos os dias. Se parar de os tomar vou morrer.»

«Posso vê-los?», pergunta a mulher franzindo o sobrolho. Abre a minúscula bolsa da garota e a sua espinha é atravessada por um calafrio. Volta a abraçar a moça com mais força ainda. É a vez da mulher lacrimejar.

«Estão quase a acabar», diz a menina, «vou morrer dentro de poucos dias.»

«Não vais morrer. Não te vou deixar morrer», a mulher fala lentamente e a soluçar, «quando acabares os teus tomamos juntas os meus.»

A menina fecha os olhos e abraça a mulher com emoção. O choro apaga-se. Um sorriso de esguelha esculpe-se na sua pequena cara. Mas a mulher não pára de chorar. Acredita ser seu dever de mãe partilhar os seus antirretrovirais com a pequena Neta.  

 

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