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A astúcia, o amor e um lugar na presidência da Frente de Libertação

Com 32 anos de idade, Marcelino dos Santos tornou-se secretário para as Relações Exteriores da UDENAMO, movimento presidido por Adelino Guambe. O facto de ser uma figura influente pesou muito nessa decisão, pois o nacionalista moçambicano tinha tantos contactos espalhados pelo mundo que até lhe permitiram conseguir arranjar passaportes falsos para os seus camaradas, de modo a despistar a PIDE.

Mais tarde, Sérgio Vieira, por exemplo, chegou a ser Mohamed Moumine, natural de Abalak, no Níger. Aliás, mesmo Marcelino teve que se submeter ao uso de passaportes falsos. Num deles chegou a chamar-se Ahmed Draoui, de nacionalidade marroquina. Ainda com 32 anos de idade, Lilinho Micaia, outro pseudónimo seu, participou, em 1961, em Marrocos, na fundação da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), tornando-se secretário-geral. 

O cargo de presidente da organização foi ocupado por seu amigo Mário de Andrade, nessa altura presidente do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), devido à prisão de Agostinho Neto.

O secretariado da CONCP contou ainda com Aquino de Bragança, outro grande companheiro de muitas lutas de Marcelino e que morreu na queda do Tupolev 134 que transportava Samora Machel, em Mbuzine. Um ano depois de ingressar na UDENAMO, Marcelino dos Santos entra para história de Moçambique quando, a 25 de Junho de 1962, em Dar es Salaam, na Tanzânia, torna-se membro fundador da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), tendo, de seguida, sido nomeado para o cargo de secretário para Relações Exteriores. Afinal, mais do que ele, se calhar, nenhum outro militante tinha tantos contactos relevantes para o movimento pelo mundo fora.

Quando o seu pai soube da sua ligação com a FRELIMO, passou a acompanhar sempre as notícias no seu pequeno rádio, volume baixo, secretamente, sem nunca comentar os assuntos com os filhos. 

Firmino dos Santos, homem compreensível e que respeitava a decisão dos filhos, esmerou-se em proteger a família das notícias que chegavam de Dar es salaam ou de outras latitudes. Esse exercício repetiu-se por três anos. Em 1965, com 67 anos de idade, Firmino dos Santos morre doente. Marcelino não teve qualquer oportunidade de se despedir do pai.

Nesse ano, com coragem, enfrentava com os seus camaradas de trincheira uma velha quizumba na frente de combate: o regime colonial português. Por isso, não foi a Lourenço Marques e submeteu-se a ficar sem ver a mãe que tanto amou e os irmãos durante 25 anos. Entre ofensivas vitoriosas, recuos estratégicos, perda de batalhas e de grandes homens como Filipe Samuel Magaia, em 1966, primeiro e único chefe do Departamento de Defesa e Segurança durante a luta armada, a FRELIMO foi atravessando uma série de problemas graves, muitas vezes resolvidos com derrame de sangue e, noutras, com deserção de militantes. 

Esta situação conduziu o movimento ao seu segundo congresso, em 1968, o primeiro no território moçambicano. Aconteceu em Matchedje, Niassa, no qual Eduardo Mondlane foi reeleito presidente da Frente. Mesmo debaixo de tantos conflitos, sem poder contar com a presença dos seus familiares, Marcelino dos Santos escolheu amar.

Aí, em Outubro de 1968, casou-se com Pamela Beira, jovem do ANC que fugira da África do Sul – onde corria risco de ser presa acusada de “imoralidade”, por manter relação amorosa com um jovem mulato durante o regime do Apartheid – para Tanzânia com 19 anos de idade. Casados, Marcelino e Pamela tornaram-se pais de Ilundi e, depois do matrimónio, a esposa do herói adquiriu a nacionalidade moçambicana, passando a ser militante da FRELIMO. Por isso, deixou os trabalhos que a sustentavam em Dar es Salaam e entregou-se à causa dos moçambicanos por inteiro. 

Como membro da FRELIMO, Pamela trabalhou sob direcção de Jorge Rebelo, do Departamento de Informação, e ajudou a formar a Organização da Mulher Moçambicana (OMM). Em princípios de 1969, Marcelino é mandatado para levar a bom porto a missão de buscar ajuda para a FRELIMO na Conferência da Solidariedade com as Colónias Portuguesas em Luta. Com a colaboração de Óscar Monteiro, em Roma, Kalungano, acompanhado por Cabral e Neto, conseguiu uma audiência com o Papa Paulo VI, que se solidarizou com a causa dos movimentos nacionalistas em África. A posição do Vaticano teve impacto no mundo, pois, assim, “legitimou-se” a luta dos movimentos nacionalistas. 

Com o assassínio de Eduardo Mondlane, a 3 de Fevereiro de 1969, Marcelino tornou-se membro do Conselho de Presidência da FRELIMO, com Uria Simango e Samora Machel. Nesses dias de luto, coube a Pamela a responsabilidade de cuidar dos três filhos do primeiro presidente da Frente de Libertação, pois Janet Mondlane se encontrava fora de Dar es Salaam. E porque os colonialistas portugueses viam em Dos Santos um homem forte, a seguir à queda de Mondlane, tentaram, a 10 de Fevereiro de 1969, aniquilá-lo com o mesmo tipo de bomba que matou o presidente da FRELIMO. O evento foi frustrado pelas autoridades tanzanianas que interceptaram o engenho armadilhado. 

A confirmação da semelhança dos detonadores veio de Londres, que concluiu que as bombas tinham sido construídas na mesma oficina, com baterias da mesma marca Hitachi, fabricadas em Osaka, com número de série 006/9V. As pilhas faziam parte de um lote de 950 mil unidades e que tinham sido exportadas em Agosto de 68. Avança um artigo da Tempo, publicado a 9 de Fevereiro de 1975, segundo o qual 2 000 baterias dessa série tinham sido enviadas para Moçambique, com a data de expedição 20 de Agosto de 1968.

Marcelino dos Santos foi sempre um homem rebelde, frontal, de convicções fortes, eloquente, do ponto de vista ideológico marxista-leninista até ao fim, defensor de políticas socialistas. Por tudo isso, desde a primeira hora, Marcelino teve em Samora Machel um admirador a sério.

 

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