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32 anos de Ualalapi: Um olhar sobre o Apocalipse na obra à luz de “O Último Discurso de Ngungunhane”

Contextualização

Ualalapi, título da obra e nome de uma personagem que recebe a missão de matar o rei hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Mafename, a mando do seu próprio irmão Ngungunhane-Gungunhana que se torna, assim, o imperador de Gaza. Este imperador é famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do séc. XIX. Eleito um dos 100 melhores romances africanos do século XX, em Ualalapi Ungulani Ba Ka Khosa conta a história de Ngungunhane, da sua ascensão até a sua queda. (Kapulana)

Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1987 e até hoje ecoa com uma profusão indescritível e imbatível no seio da rica literatura moçambicana. Ler Ualalapi é sempre um exercício de auto-deleite, de aprendizagem e de envolvência numa máquina do tempo que nos faz devorar página por página, espremendo as folhas movidos por um enlevo surreal. Actualmente é quase como um crime desconhecer Ualalapi, desconhecer a hipercorrecção e a forma como Ungulani torneia e esgota a descrição do espaço físico, social e psicológico, dando-nos uma imagem bem pincelada e sonora do que se trata na diegese.

 

O livro Apocalipse da Bíblia e Ualalapi à luz de “O Último Discurso de Ngungunhane”: Que intercessão?

Passados 32 anos, o que dizer de Ualalapi? Para uns uma obra literária e para outros didáctica, mas afinal de contas que obra literária não contém no seu ventre um pendor didáctico? Há sempre um didactismo por detrás de qualquer criação literária seja ficcional ou não. Refira-se que a análise feita tem em conta apenas “Ualalapi”, isto é, exclui-se “As Mulheres do Imperador”.

Associamos o livro Apocalipse da Bíblia à obra Ualalapi, mais particularmente a “O último discurso de Ngungunhane”. O nome do livro bíblico de Apocalipse vem de uma palavra grega que significa “Exposição” ou “Revelação”, como aparece em algumas traduções. O próprio nome já indica qual é o conteúdo do livro de Apocalipse: ele expõe assuntos que estavam ocultos e revela eventos que aconteceriam muito tempo depois de terem sido escritos. Lancemos, então, um especial olhar ao discurso que o imperador de Gaza fez na iminência do seu exílio no qual:

“(…)gritou como nunca, silenciando aves e o vento galerno, petrificando os homens e as mulheres com as palavras que saíam em catadupa e que percorreram, em outras bocas, gerações e gerações em noites de vigília e insónias (…)” (KHOSA, 2017:73)

Encontramos nesta asserção as primeiras impressões que ligam o Apocalipse, a Revelação e a premonição à obra em alusão. Há um sinal temporal que demonstra que o que estava prestes a acontecer inspirou habitantes futuros, ou seja, palavras que romperiam a barreira do tempo e ganhariam vida própria. De seguida, Ngungunhane iniciou o seu discurso, a nosso ver premunitivo, que foi dito com total disforia ao seu povo, em gesto de despedida:

“(…) Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o odor dos vossos crimes e viverão a vossa curta vida tentando afastar as imagens infaustas dos males dos vossos pais, avós, pais dos vossos avós e outra gente da vossa estirpe. Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os pelos males que padecerão nas palhotas sem idade (…)” (ibid:74)

O imperador dirige-se ao seu povo, agora metaforizado e vocativizado sem qualquer ensejo e chamando-o “cão”, vomitando aquele que é o seu apocalipse para o Império de Gaza, particularmente, e para Moçambique em geral.

“(…)Os nomes que vêm dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos m***a e vocês agradecendo(…)”(ibid:75)

Vaticina-se uma vivência bastante conturbada, a perda da autenticidade telúrica, do nacionalismo, ou seja, trata-se de uma premonição antiutópica ou se preferirmos, distópica. Não é segredo para ninguém que, por exemplo, haja actualmente maior preferência pela atribuição de nomes inspirados em modelos ocidentais e muito distantes do que é nativo-africano no seio das sociedades “globalizadas”.

“(…) E pela primeira vez na vossa vida vereis filhos rejeitando as mães que se atirarão às casas onde o corpo se venderá ao preço do pão, fornicando com as crias que desconhecem e apontando ao acaso os presumíveis pais da caterva de miúdos que nascem às dezenas(…)” (ibid:76)

Para terminar, Ngungunhane declara:

“Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo (…) seus cães, a maldição que abraçou estas terras perdurará por séculos e séculos (…) rebentarão as barrigas grávidas de mulheres inocentes, obrigando os pais a comer os nados-mortos sem uma lágrima nos olhos (…) Eis o que será a vossa desgraça de séculos, homens. (…)” (ibid: 79-80)

 

Conclusões

Consideramos que a escrita de “O último discurso de Ngungunhane” é apocalíptico, na medida em que este constitui um vaticínio, ou seja, uma revelação carregada de distopia. Se considerarmos, embora haja várias interpretações, que o Apocalipse faz revelações sobre o futuro do mundo, Ualalapi, particularmente no último capítulo, faz revelações do que aconteceria de 1987 em diante.

Podíamos ser um pouco mais atrevidos e constatar que esta escrita relacionada à Bíblia está ligada também  ao autor, Ungulani Ba Ka Khosa, veja-se: Apocalipse é o último livro da Bíblia assim como “O último discurso de Ngungunhane” o é em “Ualalapi”; De igual maneira, em “Orgia dos loucos”, do mesmo autor, o último conto tem um título que indica uma revelação/premonição: “Fábula do futuro”, por conseguinte a escrita de Khosa em Ualalapi está formal e ideologicamente, de alguma forma, relacionada ao livro “Apocalipse”, da Bíblia.

 

Bibliografia

Corpus

KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana. Lisboa, Porto Editora, 2017.

 

 

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